Bergman Desmascara a Natureza Humana
Os seis primeiros minutos de Persona (Persona; 1966), um dos mais complexos tratados psicológicos em imagens rodados pelo cineasta sueco Ingmar Bergman, são construídos de imagens silenciosas
Os seis primeiros minutos de Persona (Persona; 1966), um dos mais complexos tratados psicológicos em imagens rodados pelo cineasta sueco Ingmar Bergman, são construídos de imagens silenciosas, sem palavras, como as compostas sequências iniciais de Gritos e sussurros (1973), outro terrível mergulho no diabo do homem feito pelo realizador nórdico; estes seis minutos iniciais de Persona funcionam como um prólogo do filme, estão colocados na montagem antes mesmo de os créditos começarem a descer na tela (ou no vídeo da televisão, pois agora esta obra-prima extremamente plástica e outro tanto profunda está disponível em dvd no lançamento da Versátil). O conteúdo das imagens deste sexteto de minutos é estranho, desorientador, parecem frutos duma livre associação da mente mas executada com um rigor cinematográfico que confere uma inesperada unidade estética aos aparentes disparates vistos; vemos primeiramente surgir do fundo escuro do plano uma tela branca, depois é mostrado um projetor, negativos de filmes que se queimam, pedaços de filmes antigos nem sempre fáceis de identificar, encaixes de sequências sem sentido mas inquietantes como uma mão que é pregada e sangra; o prólogo vai concluir-se com a cena do garoto, inicialmente deitado, depois ele senta, passa a acariciar um borrão branco da imagem que pouco a pouco se converte na fotografia duma mulher (quem vê os filmes de Bergman, reconhece a face da atriz Liv Ullmann), depois um forte primeiro plano do rosto do garoto voltando-se para a câmara e começam a baixar os créditos.
Findos os créditos, uma médica dá instruções à enfermeira sobre como tratar com uma paciente que é uma atriz que durante uma representação teatral emudeceu subitamente e dali em diante se tornou muda em sua vida mesmo. Persona vai lidar o tempo inteiro com as trocas de personalidades entre a enfermeira Alma (vivida por Bibi Andersson) e a doente muda Elisabet Vogler (interpretada por Liv Ullmann). Na cena que vem depois da conversa da médica com a enfermeira, Alma entra no quarto de Elisabet e começa a falar de si mesma para dar início ao difícil contato com a paciente muda; ao longo da narrativa a espiritualidade doente de Alma, que joga sua alma para fora nas frases que vai dizendo, é confrontada com o achado espiritual de Elisabet (que, doente, cura sua alma jogando-a para dentro: mantendo-se em silêncio diante dos absurdos do mundo, como aquela imagem do monge que se queima vivo, imagem que, horrorizada, recuando diante da telinha, a muda Elisabet vê na televisão).
(Rodado na ilha de Farö, uma espécie de útero espiritual do cineasta Bergman, Persona, segundo conta o diretor em seu livro Lanterna mágica (1987), teve também uma representação sentimental para seu criador: durante as filmagens Bergman e sua atriz Liv Ullmann, a Elisabet do filme, se apaixonaram. Persona, em suas cenas, não deixa de trazer a marca desta paixão.)
Persona lida muito com a insistência em determinadas imagens. Talvez o tema central de Persona sejam as mutações de caracteres entre Alma e Elisabet, como forma de desmascarar o que se esconde por trás dos gestos de conduta do ser humano; assim, a repetição exaustiva (duas vezes na montagem), em imagens e frases, da longa sequência em que Alma, vampirizando Elisabet, conta a história de Elisabet como se ela própria, Alma, fosse Elisabet, é significativa. Os planos finais do filme são igualmente repetições: o menino que acarinha a fotografia da mulher e os negativos do filme que se espatifam, queimando-se.
Persona fala agudamente da necessidade de calar. Esta necessidade que impediu a personagem-cineasta Guido Anselmi de rodar o filme cujo cenário fora armado em Oito e meio (1963), do italiano Federico Fellini. Esta necessidade de calar é a mesma que torna perturbadora a relação do casal de A noite (1960), do italiano Michelangelo Antonioni. O calar torna-se difícil para as criaturas de A chinesa (1967), do franco-suíço Jean-Luc Godard, que falam o tempo inteiro coisas cheias de sentido que ao mesmo tempo correm o risco de perder o sentido diante da impotência da fala. Persona é um filme europeu de seu tempo (os anos 60 do século passado) que conserva uma vitalidade quase insuportável; trata da solidão buscada, do silêncio como forma de resposta.
Não resisto a concluir esta análise com um parágrafo vital de Bergman extraído do já referido livro Lanterna mágica, para descobrir até que ponto vida e arte se fundem no universo bergmaniano.
“A solidão que nós mesmos escolhemos é fácil de suportar. Ao ficar só, barriquei-me em minha casa e estabeleci uma rotina minuciosa: levantava-me cedo, dava um passeio, trabalhava, lia. Às cinco da tarde vinha uma vizinha me fazer o jantar, lavava a louça, e às sete eu estava de novo sozinho.”
P.S.: Curiosidade técnica: o ator Gunnar Bjornstrand, visto em outros filmes de Bergman dos anos 50 e 60, aparece aqui só com sua voz, se não me falha a percepção. Uma voz-over de narrador a certa altura falando de Elisabet. E depois, como marido de Elisabet, mas contracenando com Bibi Andersson que na pele de Alma assume a tela como se fosse Elisabet na permuta de identidades entre as duas personagens, a voz-off de Gunnar dialoga com a voz-in de Bibi.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br