Provocando o Conformismo do Espectador
Os filmes da diretora brasileira Julia Murat mexem com a natureza passiva do observador sentado numa sala de cinema
Imagem: Divulga??o/Internet
Os filmes da diretora brasileira Julia Murat mexem com a natureza passiva do observador sentado numa sala de cinema. Para o desestabilizar. Regra 34 (2022) é, ao mesmo tempo, uma obra característica de Julia, com uma consciência crítica aguda da linguagem cinematográfica, e algo que foge um pouco à exasperação do plano que se vê em Histórias que só existem quando lembradas (2011), pela inserção duma erotização de filmar que convida o espectador a uma incômoda participação nos jogos físicos encenados. Na primeira imagem uma mulher se masturba diante da câmara de Julia que enquadra um pequeno vídeo onde está esta mulher: do outro lado, na ficção está um consumidor de cenas de sexo (o espectador de ficção), mas também o espectador que somos, o espectador verdadeiro que passa inevitavelmente a consumir este sexo pelas mãos duma cineasta que certamente está interessada ali para além do sexo em si, os seus aspectos visuais masturbatórios.
Julia afirmou que a ponta de seu projeto era fazer um filme sobre a pornografia. Mas narrativa se alastrou: Simone, a criatura que abre o filme em excitações, é uma advogada que quer ser promotora pública e atua numa instituição que trata de mulheres vítimas de violência doméstica. Simone (em adequadíssima composição de Sol Miranda) é uma profissional do sexo virtual e, em sua vida, com seus amigos e amantes (Lucas Andrade e Lorena Comparato, coadjuvantes fortes), exacerba nos limites de sexo e violência. Uma cena de autoasfixia de Simone encenada com seu parceiro (para venda no canal da internet) dialoga com sequências em que se relatam casos de violência não consentida contra mulheres. A dor como fonte de prazer ou a dor imposta pelo estranho prazer do outro. Nossos corpos: nossos limites. Julia vai por aí. Até aquele voraz plano final em que o olhar e o gesto facial de Sol Miranda encaram atrevida e ameaçadoramente a câmara (o espectador) de Julia Murat.
É sintomático que o Leopardo de Ouro do Festival de Locarno de 2022 tenha sido concedido a Regra 34. Alain Guiraudie era um dos jurados do Festival; ele é diretor do filme francês Um estranho no lago (2012), que também trazia enviesadas e às vezes ocultas provocações morais e sexuais pela inserção de fortes cenas homoeróticas; é bem possível que Guiraudie e seus parceiros tenham enxergado na realização de Julia o mesmo germe transgressivo de certas produções europeias, como a citada dirigida por Guiraudie.
As cenas de asfixia no sexo e mais ainda a cena em que Simone ameaça ou simula castrar seu parceiro com uma faca (no plano a faca perigosamente próxima do pau do homem) evocam de imediato O império dos sentidos (1976), do japonês Nagisa Oshima. Embora a duplicidade de comportamento da personagem central (a burocracia do pensamento e a selvageria do corpo) nos leve a A bela da tarde (1967), de Luis Buñuel.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br