A Natureza de José de Alencar
O Tronco do Ipê não chega a ser racista como romance; não é seu tema: seu tema é um amor novelesco na elite brasileira, lembra muito as tramas de velhas telenovelas do século XX
Escondido durante anos das escolas onde seu nome se tem perpetuado como um dos cumes históricos de nossa literatura, o lado racista e escravocrata do escritor cearense José de Alencar tem estado na ordem do dia do revisionismo histórico-literário brasileiro. Nada que perturbe o exame de sua escrita romântica, em que o domínio sintático do romancista se choca com o conformismo extremamente reacionário de sua visão de mundo; lê-lo pode ser hoje uma dificuldade, ainda quando se trate dum romance bem articulado em termos de estrutura ficcional, como O tronco do ipê (1871), que usa o símbolo duma árvore comum no Brasil, o ipê, para determinar um certo ritmo narrativo.
O tronco do ipê não chega a ser racista como romance; não é seu tema: seu tema é um amor novelesco na elite brasileira, lembra muito as tramas de velhas telenovelas do século XX. Um amor entre jovens impedido por conflitos familiares arcaicos entre os pais dos apaixonados. Mas surgem rompantes racistas no texto: “Saía dela um preto velho. De longe, esse vulto dobrado ao meio parecia-me um grande bugio negro, cujos longos braços de perfil representados pelo nodoso bordão em que se arrimava.” Bugio negro, senhor Alencar? Note-se ainda que Alencar, aqui e ali, aparece em primeira pessoa, embora não seja personagem e o narrador do romance seja a terceira pessoa onisciente. “A linguagem dos pretos, como das crianças, oferece uma anomalia muito frequente. É a variação constante da pessoa em que fala o verbo; passam com extrema facilidade do ele ao tu. Se corrigíssemos essa irregularidade, apagaríamos um dos tons mais vivos e originais dessa frase singela.” Pretos e crianças equiparados pela linguagem? Há uma discussão entre um moço e um velho em que este defende a necessidade da escravidão; é claro que o herói defende a liberdade dos escravos; mas o argumento do velho é sinuoso: os proletários ingleses vivem em piores condições que nossos escravos. É o pensamento de Alencar ou somente o duma personagem?
O certo é que O tronco do ipê não trata destas coisas. Apesar de ser um dos livros de Alencar em que a estrutura de narrar tece melhor os fios emocionais da história, Alencar vai desmontando este aspecto estrutural com suas descrições excessivas da natureza. Transborda, derramando o caldo: e é um caldo indigesto, fuliginoso muitas vezes.
Penso que discutir hoje o racismo de Alencar é necessário, mas devemos prestar atenção nos racistas com que topamos ordinariamente nas ruas de hoje: que, como disse um amigo meu que é negro, fogem dos pretos (e fazem suas crianças fugirem das crianças pretas) como se fosse escorrer tinta do corpo dos negros e manchar a impoluta brancura da pele dos outros com a pele negra. Os racistas vivos são muito mais perigosos. Sobre Alencar, a fragilidade de sua literatura basta para o demolir.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br