Li pela primeira vez Humilhados e ofendidos (1861), de Fiódor M. Dostoievski, em 1973, ano em que cheguei a Porto Alegre, quando contava com dezessete anos; era uma tradução da escritora cearense Rachel de Queiroz. Releio-o agora, uma tradução diretamente do russo feita por Klara Gourianova.

Não é o melhor Dostoievski, mas já ensaia seu senso de narrar em literatura e sua agudeza para descobrir as cruezas da alma humana. É narrado em primeira pessoa por uma personagem que não é o protagonista. Nem sei bem se há um protagonista na história. O centro é uma cidadezinha de interior onde os acontecimentos tão patéticos quanto inusitados se sucedem.

A piedade do narrador, as desventuras da órfã Nelly, a paixão de Aliocha, a sinceridade de Natascha são embaladas com uma ternura ainda incipiente por Dostoievski. Estamos ainda longe daquela ternura doida, desgovernada, maldita do Aliocha de Os irmãos Karamazov (1880). Mas não há como não se emocionar com a morte de Nelly no final do livro: “E quando você ler o que está escrito, vá a ele e diga que eu morri, mas não o perdoei. Diga-lhe também que há pouco tempo eu li o evangelho. Lá está escrito: perdoai a todos os seus inimigos. Pois eu li isso e mesmo assim não o perdoei, porque quando mamãe estava morrendo e ainda podia falar, suas últimas palavras foram: ‘Eu o amaldiçoo’, então, eu também o amaldiçoo, não por mim, mas por mamãe...” Uma mágoa levada para o além.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)