Antes, Vem Rossellini

Antes de amar qualquer outro cineasta, o espectador deveria ajoelhar-se diante do italiano Roberto Rossellini

30/10/2014 12:39 Por Eron Duarte Fagundes
Antes, Vem Rossellini

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Antes de amar qualquer outro cineasta, o espectador deveria ajoelhar-se diante do italiano Roberto Rossellini. É certo que o espanhol Carlos Saura um dia fez Elisa, vida minha (1977), a mais angustiante revelação de personagens da história do cinema. Também é verdade que o alemão Alexander Kluge desconjuntou o cinema num filme arrebatador, O ataque do presente contra o restante do tempo (1984).

Então deparamos com Rossellini. Deveríamos sentar diante duma tela para rever, como num santuário a que se chega depois duma peregrinação, toda sua obra, desde Roma, cidade aberta (1945), e topar com este pico que nos extasia em toda a sua estranha ventania que é Viagem à Itália (Viaggio in Italia; 1953), por aqui também conhecido como Romance na Itália.

Pode-se dizer que a estranheza da metamorfose do neorrelista Rossellini já estivesse no filme anterior do cineasta, Europa 51 (1952). Mas a reviravolta da personagem de Ingrid Bergman em Europa 51, engajando-se na luta social, traz à tona as preocupações dos primeiros anos de Rossellini. Houve quem dissesse que o germe da metafísica de Rossellini já se encontrasse no suicídio do garoto Edmundo em Alemanha, ano zero (1947). E na tresloucada mulher que atravessa a realidade dos pescadores em Stromboli, terra de Deus (1949), ponto inicial de seu relacionamento profissional e afetivo com Ingrid, a questão do realismo cinematográfico já se complicava bastante. Para quem soube ver, as crônicas de guerra com que Rossellini expôs sua estética ao mundo eram mais uma mistura de antropologia e filosofia do que um documentário bruto (documentário bruto, na verdade, nenhum grande cineasta chega a fazer, embora se valham os diretores de aspectos da linguagem do gênero para transmitir cunho de veracidade a seus relatos).

Tudo bem: já em Roma, cidade aberta o Rossellini amplo e metafísico se insinuava. Mas é em Viagem à Itália, relato perverso e desabusado dos relacionamentos contemporâneos (a segunda metade do século XX), que ele dá a cara a bater. E foi batido e combatido em seu tempo. Ninguém entendeu aquele desvio de conduta do realizador realista, social e cristão que agora (meio do século XX) mergulhava sem pudores no cinismo da burguesia europeia e suas questões sentimentais serpenteantes (em Viagem à Itália um casal inglês viaja pelo país peninsular contrapondo suas misérias à riqueza cultural que visitam). Não há mesmo nenhum padre que, como em Stromboli, chegasse à personagem da mulher para lhe dar conselhos católicos. No entanto, no final, pouco antes de dar-se a reconciliação pesarosa e culpada do casal, se vê uma procissão religiosa. Todavia isto não diminuirá o impacto da crueldade de todo o filme. Mal visto nos anos que sucederam a seu aparecimento no universo do cinema, Viagem à Itália cresceu assombrosamente com os anos.

Antes do Michelangelo Antonioni da trilogia da incomunicabilidade (compare-se o fim de Viagem à Itália com a forma com que Antonioni reaproxima, pesarosa e culpadamente, seu casal na conclusão de A noite, 1960), veio Rossellini. Veio Rossellini antes dos casamentos infernais de Ingmar Bergman, já esboçados pelo sueco em Morangos silvestres (1958; pense-se no carro que abre Viagem à Itália, um travelling-para-a-frente numa estrada seguido de um travelling lateral abordando a paisagem da estrada seguido de planos da conversação do casal dentro do carro, confrontemos com a extensa e intensa viagem pelo interior da Suécia em Morangos silvestres). No início da década de 50, com Europa 51 e Viagem à Itália, Rossellini estabeleceu o comportamento de um cinema além dos limites de qualquer modernidade que o cinema possa vir a atingir.

No entanto, o realismo de seus inícios está sempre presente. Um pouco das dificuldades do relacionamento do cineasta com sua mulher e atriz deve ter passado para o celuloide. Um documentário da alma, como aqueles que Antonioni viria a fazer entre o cabo daquele decênio e o princípio do seguinte. O sofisticado mundo italiano aparece nas visitas que a mulher faz a museus e ruínas em busca dum substituto para sua dor, a figura pragmática do marido é um contrapeso semelhante àquele que o francês Robert Bresson colocou em Uma mulher suave (1967), em que a precariedade intelectual do homem não compreende as inquietações da mulher, de espírito mais refinado. A visita a antiguidades, em Viagem à Itália, tem a finalidade de interpretar o mundo de hoje à luz de sua ancestralidade. Daí nasce uma inusitada metafísica na linguagem cinematográfica de Rossellini; mais do que um diretor de filmes, este italiano é um antropólogo espiritual que se vale da câmara para pôr em marcha seu cérebro de pensador do mundo.

As palavras “Ti amo”, ditas pelo homem no final do filme, são as mesmas que Ingrid Bergman, em carta famosa a Rossellini, revelou ser só o que sabia de italiano, quando propôs ao cineasta de Paisà (1946), um dos filmes que ela viu encantada nos Estados Unidos, trabalharem juntos em alguma produção dirigida por ele. Daí me parecer evidente que o realismo de Rossellini era uma questão moral com sua própria vida. Desde antes, desde os tempos em que se imaginava que ele só estava falando de pessoas muito diferentes dele.

 

P.S. (2014): O texto acima foi escrito numa revisão de Viagem à Itália em 2005. Antes, portanto, de se tomar contato com os filmes “didáticos” feitos para a televisão por Rossellini em seus anos finais; estes filmes televisivos foram lançados em anos mais recentes, em dvd, no Brasil, pela Versátil. O contato com o Rossellini final altera certas perspectivas da antropologia cinematográfica do realizador e o realismo que a percorre ou dela se afasta, mas não muda a substância humanista de todos estes ingredientes de sua obra.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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