Os Tempos Sem Sentido, Com Sentido
Filme de epoca, ou de certa epoca, O Agente Secreto utiliza os telefones de orelhao como um aceno para coisas nao tao antigas que, diante das mudancas da tecnologia, se tornaram pre-historicas
O agente secreto (2025), de Kleber Mendonça Filho, está ambientado em Recife no fim dos anos 70: a atmosfera dos tempos de perseguição e perigo daquela década em que a sociedade brasileira era determinada pela ditadura militar está em cena, mas nunca é citada diretamente, quer nos diálogos, que nas imagens. A tentação comparativa com Ainda estou aqui (2024), de Walter Salles, outro filme brasileiro cujo barulho midiático começou nos festivais, chegou às plateias majoritárias dos cinemas e circula o famigerado Oscar americano, vem; Ainda estou aqui conta uma história carioca do começo desta mesma década de 70, é direto em suas referências ao regime político autoritário da época; o método de Kleber, como se sabe de seus filmes anteriores, vai por outro caminho, é enviesado ou transversal, transformando seu O agente secreto numa metáfora de situação, cujos signos exigem a elaboração perceptiva do espectador para descobrir mesmo o que se passa diante da câmara.
A primeira sequência se dá num posto de gasolina, numa estrada deserta do Brasil interior. A personagem de Wagner Moura (que ao longo do filme está notavelmente dirigido pelo realizador, que logra despojá-lo de alguns artifícios de que o ator tem abusado nos últimos anos) chega em seu pequeno veículo ao posto para abastecer; intriga-se com a imagem, ocultada por papelões, dum cadáver no solo do estabelecimento, questiona o atendente, a coisa não se esclarece muito, chega a polícia, aborda a criatura de Wagner, a coisa fica neste mistério que não se conclui, ao contrário se esconde, aprofundando certas características secretas do cinema de Kleber. Depois, as partes do filme se desenvolvem: O pesadelo do menino, Institutos de identificação, Transfusão de sangue. As conexões são mais sugeridas do que expostas. Nunca saberemos ao certo quem é a personagem de Wagner, que costura a ação; esta figura tem dois nomes que se alternam, Armando e Marcelo, parece um dos clandestinos da época, talvez o agente secreto. Mas há Elza (participação fundamental de Maria Fernanda Cândido), que toma as rédeas de proteger e controlar a vida de Armano/Marcelo; é ela uma agente secreta? Temos também as duas jornalistas que ouvem as gravações que Elza fez com Armando, e mergulham na história para chegar a uma conclusão: estas cenas das jornalistas iluminam o filme como se fossem as porta-vozes do ato de filmar do cineasta: a metáfora da metalinguagem, o godardiano do século XXI.
(Filme de época, ou de certa época, O agente secreto utiliza os telefones de orelhão como um aceno para coisas não tão antigas que, diante das mudanças da tecnologia, se tornaram pré-históricas; como uma carruagem. O aparecimento dos orelhões na imagem, ou na narrativa, são como estribilhos no tempo.)
Ex-crítico de cinema, cinéfilo dos mais apaixonados (seu extraordinário Retratos fantasmas é um autorretrato de cinefilia), Kleber Mendonça Filho não deixa de espalhar citações a filmes em O agente secreto. Algumas bastante diretas na imagem. O nome do filme pode aparecer num cartaz dentro duma sala provavelmente de estúdio ou distribuidora (Perdidos na noite), no frontispício de um cinema (King Kong) ou mesmo num cartaz na frente dum cinema “chamando” os transeuntes para entrar na sala e ver o filme (Pasqualino Sete Belezas). A alusão cinematográfica também se dá na sequência final, quando anos depois da ação central surge em cena o filho do protagonista, este filho interpretado aqui pelo mesmo ator, Wagner Moura, a cena se dá num banco de sangue onde este filho, trabalhador local, conversa com uma das jornalistas e revela que ali onde ele trabalha, um banco de sangue, lhe traz uma evocação de infância, ali era uma sala de cinema aonde ia com seu pai, de que não se lembra muito porque o pai morrera cedo, nos caminhos obscuros da época.
Com nome de filme policial americano ou inglês, O agente secreto não é nenhuma narrativa do cineasta Alfred Hitchcock nem um conto de espionagem à John le Carré. O que o diretor brasileiro faz é outra coisa: muito brasileira no olhar que dirige a partir do Recife para uma quadra de nossa história cujas marcas ainda estão por toda a parte. O agente secreto tenta cavoucar nestes signos e os reinterpretar, de maneira livre, sem indicações totalitárias de ordem visual.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br
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