Obra-Prima Em Construo

Limite, o filme que Mrio Peixoto fez no comeo da dcada de 1930, foi recentemente eleito como o melhor filme brasileiro de qualquer poca

30/11/2015 10:24 Por Eron Duarte Fagundes
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“Eis um filme ao mesmo tempo clássico e moderno.” (Hélio Nascimento, in “Limite: clássico e moderno”, Revista Moviola número 2, 1983, publicação do Clube de Cinema de Porto Alegre).

A personalidade casmurra e esquisita de Mário Peixoto, escritor e cineasta brasileiro, ajudou a transformar Limite (1931), o único filme que ele rodou, num mito. Depois de ser amado pela intelectualidade brasileira dos anos 30 e 40 por seu filme, Peixoto impediu que seu trabalho pudesse ser conhecido das gerações que vieram a partir da década de 50. Só nos começos dos anos 80 se pôde ver uma montagem do material filmado por Peixoto: houve quem amasse muito as experiências de hipnose visual da realização e houve também quem, sarcasticamente, dissesse que teria sido melhor se o filme permanecesse como mito, desconhecido para todo o sempre. Há bastidores curiosos em torno de Limite, o que torna sua estatura de lenda uma adição constante. Há um artigo atribuído ao diretor de cinema russo Sergei Eisenstein dissecando Limite dentro dos possíveis parâmetros da montagem de atrações; estudos atuais comprovam que foi o próprio Mário quem redigiu o texto; paranóia de um artista de gênio? Num artigo de 1942, Vinicius de Moraes, comentando os esforços que fez para que se exibisse Limite para o cineasta norte-americano Orson Welles, então filmando no Brasil mais um de seus projetos inacabados, relata a sessão como um evento que reuniu muita gente importante. “Enfim, às nove horas da noite a salinha do Serviço de Divulgação enchia-se com umas trinta pessoas, entre as quais Maria Rosa Oliver, a escritora argentina, diretora de Sur, que se acha entre nós, e que é uma das mulheres mais inteligentes que já encontrei; madame Falconetti, a inesquecível Joana d’Arc de Dreyer; Frederick Fuller, o grande cantor inglês, e sua senhora; Carlos Guinle e senhora; Otto Maria Carpeaux; o cinegrafista húngaro Fanto; e outros amigos cujos nomes já têm ilustrado esta coluna, como fiéis frequentadores das minhas pequenas sessões.” Segundo Vinicius, Welles teve a melhor opinião sobre o filme. E Carpeaux, o renomado crítico literário dos anos 40, soprou ao ouvido de Vinicius: “Mas é poesia pura...” Nos anos 80 (a data precisa é a noite de 22.07.1983) o filme foi exibido em Porto Alegre na sala alternativa do então Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, coordenado por Romeu Grimaldi; lembro que ali foram, sessão histórica, figuras da nata da cinefilia local.

Daí se revestiu de extraordinária importância a exibição única de Limite dada na Sala Santander, em 11.06.2008, com apresentação do professor Michael Korfman e da formanda Alice Spitz da Rocha. O filme não foi prestigiado como mereceria pelos cinéfilos da cidade. Os tempos são outros: talvez a cinefilia radical tenha acabado. Um amigo me disse que a restauração digital atual teria uma metragem superior à que foi vista nos anos 80 (embora meu release da época acuse os mesmos 120 minutos atuais e a consulta a apontamentos meus e de outrem feitos em 1983 localizem os trechos que meu interlocutor diz terem sido acrescidos, como as cenas do cemitério, de que eu já tinha lembrança), talvez a característica reiterativa da imagem de Peixoto dê a impressão de um filme mais longo ou mais cansativo para alguns, mas as objeções que se fazem hoje ao filme são as mesmas que se faziam nos anos 80 (por exemplo, em 1983 já havia muitos que se queixavam e questionavam os motivos pelos quais Peixoto instava com as imagens daquelas vagas marinhas aborrecidas que davam nos rochedos). Mesmo assim, segundo o professor Korfman, são somente oitenta por cento da restauração total que virá a seguir. Mais um mito legado por Limite? Pelo projeto inicial de Peixoto e pelo histórico que se construiu em torno do filme, Limite cabe bem no conceito de obra-prima em construção: como um filme aberto, desmontável e remontável, pois seu diretor teve a oportunidade e não lhe deu em vida a feição definitiva, Limite se junta e se dispõe no imaginário do espectador que o vê e revê e ouve as histórias de bastidores da realização.

Filmado em Mangaratiba, Limite é uma invenção ousada do cinema brasileiro de antanho, antecipando escandalosamente certas conquistas estéticas do italiano Michelangelo Antonioni (as caminhadas metafísicas, os semblantes espiritualmente sombrios) ou do francês Alain Resnais (o jogo de memória rítmica que se passa entre as três personagens a bordo do barco, um homem e duas mulheres). Os planos de natureza são abundantes em Limite. Mas o elemento natural de Peixoto tem uma estética tensa, se desorienta, perde a paz dos cenários. É diferente do naturalismo mais poético e doce de Humberto Mauro em Ganga bruta (1933), por exemplo. As imagens naturais de Peixoto são exacerbantes: planos de nuvens lentos que se fundem no fundo do olho da câmara, aquelas insistentes visões do mar que se revolta nos rochedos provocando a resistência de reiterar do observador que recebe dolorosamente o impacto da seguinte rima cinematográfica ad infinitum: um plano geral do tumulto das ondas se contrapõe sempre a um primeiro plano de quando estas ondas batem nas pedras. A inserção de preciosos movimentos de câmara, algumas delirantes fusões de imagens, alguns travellings ou mover-se libertino da câmara para apagar o conteúdo e conferir à cena uma abstração, um formalismo que mexe certamente com o nervo ótico de quem vê o filme.

É uma pena que Limite tenha ficado tanto tempo longe da história do cinema brasileiro. Isto o impediu de figurar mais decisivamente num livro importante como Brasil em tempo de cinema (1967), de Jean-Claude Bernardet. Assim, aparece no livro de Bernardet numa referência velada por evocação de Porto das caixas (1963), de Paulo César Saraceni: “Desconheço Limite, que Mário Peixoto realizou no Rio em 1930, mas, através de algumas fotografias, trechos de roteiro e certas declarações, pode-se imaginar algumas afinidades entre os dois filmes.” Diz Bernardet de Porto das caixas: “O grande público não gostou de Porto das caixas —nem podia gostar desse filme lento e vazio”. Seria Limite também este filme lento e vazio? Cuido que poderá ser, mas demos aos adjetivos seus sentidos positivos: a lentidão que hipnotiza e o vazio capturado como transcendência do mundo. O estranho encontro entre o amante e o marido no cemitério junto ao túmulo duma mulher (o marido, vivido por Mário Peixoto, brinca num plano, e melancolicamente, com a aliança de casamento) gera a reflexão sobre a finitude, mais do que sobre a traição, pois se impõe o cenário do cemitério. As ondas marítimas chegam à areia da praia e apagam as pegadas que as personagens deixaram em suas andanças metafísicas: seria assim, a passagem do homem pela terra vem uma onda e apaga para não deixar rastros? E a utilização do cigarro (o homem que o acende e fuma) como pose de profundidade depois signo vulgarizado pelo cinema comercial?

No caso gaúcho, Limite não figurou no opúsculo Cinema brasileiro (1981), do crítico gaúcho Hélio Nascimento. Mas na revista Moviola número 2, de 1983, editada pelo Clube de Cinema de Porto Alegre, Hélio publicou seu ensaio “Limite: clássico e moderno”, onde adaptava as alegorias de Peixoto aos encaixes da teoria do realismo de cena que norteia radicalmente seu livro Cinema brasileiro.

E aí está Limite, a obra-prima que se constrói e refaz, sendo ela mesmo e seus sucedâneos, na mente do imaginário do espectador. “A sala de projeção pouco a pouco é invadida de penumbra, no mais completo dos silêncios”, começa Mário seu roteiro não filmado A alma segunda Salustre. De penumbra Limite está cheio. E para não renegar os processos expressionistas da época, há pelo menos uma cena em que a personagem é filmada a partir de sua sombra. Entre as alusões e citações, chama a atenção que Peixoto tenha citado um filme de Charles Chaplin na sessão de cinema que põe em sua narrativa; é curioso que num filme nada comercial e extravagante como Limite se cite, sem nenhuma referência crítica mais elaborada, o cinema popular e comunicativo (genial, é claro) de Chaplin.

Na abertura de Limite um rosto de mulher é circundado por um par de mãos que são aprisionadas por algemas. Aí começa o tenso processo figurativo de Limite, uma carga simbólica que vai além do transparente. Esta mesma imagem retorna numa das últimas imagens do filme. Que prisão é esta que se acerca da mulher? A prisão da natureza humana ou a prisão terrestre, corporal? Lá pelo desfecho do seu épico fílmico Peixoto enquadra a desolada mulher que se agarra a uma tábua que sobrou do barco; náufraga sobrevivente presa à sua tábua de salvação? São imagens quase sem chão estas de Limite; são poucas as referências em que o espectador poderá pisar sem temer.

Se a montagem de Limite, já inserida no próprio do ato de filmar com suas turbações e fusões e coisas que deságuam umas nas outras, é orquestrada com mestria por Peixoto, pode-se dizer que a música incidental organizada por Brutus Pereira e que conta com trechos de Erik Satie, Claude Debussy, Prokofiev, Ravel, Stravinsky, Borodin, César Franck, é outro delírio para os admiradores deste filme tão mítico quanto (sabe-se agora) revolucionário.

 

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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