Extase e Insatisfacao de uma Obra-Prima

O ultimo magnata e? um retrato da velha Hollywood feito por alguem que tinha plena intimidade com esta maquina de sonhos em imagens

09/08/2019 13:19 Por Eron Duarte Fagundes
Extase e Insatisfacao de uma Obra-Prima

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Lado a lado com o ,prazer das grandes habilidades narrativo-poéticas do romancista norte-americano Francis Scott Fitzgerald que transformam O último magnata (The last tycoon; 1941), sua obra póstuma cuja edição final se deveu ao crítico Edmund Wilson, amigo do ficcionista, num destes livros americanos magníficos pela grandeza e profundidade de seus caracteres, vai surgir no final da leitura o travo insatisfeito, um pequeno fel que, não invalidando o doce, muda-o em algo amargo: colhido por um súbito enfarto na plena madureza de sua arte, Fitzgerald não pôde concluir sua história, especialmente não pôde entregar ao leitor com sua soberba arte as cenas do funeral do protagonista, o magnata do cinema Monroe Stahr; nem a íntima habilidade do ensaísta Wilson, nem a precisão crítica de seu fidelíssimo resumo final substituem o que o leitor poderia suspeitar do que seriam tais cenas nas mãos de Fitzgerald. Os esforços analíticos de Wilson só fazem aumentar este travo doloroso de nós leitores.

Tirante este problema, O último magnata é um retrato da velha Hollywood feito por alguém que tinha plena intimidade com esta máquina de sonhos em imagens: Fitzgerald foi roteirista de cinema e pôs sua sagacidade de contador de histórias a serviço da indústria; conhecia, pois, por dentro os mecanismos e as personagens do meio que ele expõe em seu livro; isto se reflete na autenticidade de seu relato. Demais, a arte de Fitzgerald é soberba na maneira como aprofunda a personagem do produtor de cinema em Hollywood na figura de Stahr; a narrativa muitas vezes se bifurca, ora dando a palavra à personagem de Cecília, uma garota que se hipnotizara por Stahr desde a infância, ora se esvanecendo na distanciada e habitual terceira pessoa; o uso duma primeira pessoa secundária (não protagonista) é magistralmente executada por Fitzgerald.

A questão da incompletude de O último magnata também está em O processo, do tcheco Franz Kafka, mas a manifestação é diversa: aquele final do romance de Fitzgerald com a fofoqueira de Hollywood anunciando falsamente o casamento de Stahr e Cecília desestrutura um romance finamente elaborado, milimetricamente construído, enquanto a linha narrativa de Kafka pode ter vários fins e nenhum, se abre mesmo para um nada final. A edição que se pôde dar a O último magnata é como aquela montagem de Que viva México, o filme inconcluso do russo S.M. Eisenstein: o mais próximo possível do espírito dom autor, mas ainda frustrante a despeito dos lances geniais.

Fiquemos, pois, com a evocação da capacidade do ficcionista de restaurar certos climas narrativos inconfundíveis, que remetem ao brilho de O grande Gatsby.

“Era uma noite tranqüila, agradável, sem muito movimento, a não ser pelos carros das pessoas que saíam para se divertir aos sábados. Stahr estendeu o braço no encosto do assento, e sua mão tocava em meus cabelos. Desejei subitamente que tudo aquilo tivesse acontecido há dez anos. Então eu teria nove anos. Brimmer teria cerca de dezoito, estaria estudando em alguma faculdade do Meio-Oeste, e Stahr teria vinte e cinco, tendo acabado de herdar o mundo, repleto de autoconfiança e alegria. Ambos teríamos admirado Stahr, sem a menor dúvida. E aqui estávamos envolvidos num conflito de adultos, para o qual não havia uma solução pacífica, agora complicado pela exaustão e pela bebida.”

 

MAGNATA NA TELA – REVENDO O FILME DE ELIA KAZAN À LUZ DO ROMANCE

 

O último magnata (The last tycoon; 1976), derradeiro filme dirigido pelo norte-americano de origem turca Elia Kazan, é um dos grandes exemplares do crepúsculo de filmar das formas clássicas do cinema hollywoodiano que em alguns momentos das produções dos anos 70 tiveram tocantes suspiros finais (O último pistoleiro, 1976, de Donald Siegel, de uma maneira diversa da de Kazan, foi outro exemplo deste estilo americano crepuscular). Extraído do romance incompleto do norte-americano F. Scott Fitzgerald, o filme de Kazan corresponde um pouco ao lirismo nostálgico de Fitzgerald, mas substitui a magia verbal pelo poder cinematográfico, revelado pela característica iluminação amarelada (algo assim à luz de lareiras), pelas sutilezas dos movimentos de câmara ou pela montagem cheia de articuladas abstrações.

O senso cinematográfico de Kazan, este senso de cinema que Fitzgerald busca captar literariamente em seu livro, se revela especialmente na sequência em que Monroe Stahr, diante da incompreensão dum produtor com quem tenta capitais para um novo filme, encena um trecho de filme: esta cena está no corpo da narrativa e depois vai dar o fecho acabado para o filme (lembro que o livro, que tem a cena em seu meio, se encerra com a fofoca de Louella Parsons sobre o falso casamento de Cecília, que narra o livro e no filme é só uma mulher a mais na vida de Monroe, e o protagonista Monroe). A maneira como Fitzgerald descreveu a cena em seu romance mostra seu conhecimento teórico do cinema e suas possibilidades de roteirista em Hollywood. A maneira como Kazan põe a cena em imagem expõe a ideologia de seu filme e de seu cinema: uma sequência de gestos cotidianos, cujo significado em si parece não existir, se torna particularmente significativo graças à interpretação que o cinema dá; cinema é interpretação, interpretação feita pelo ator, interpretação feita pela câmara; é a imagem que cria uma história a partir de dados que propriamente não formam uma história. A mulher, a bolsa, a caixa de fósforos, a moeda que cai de sua bolsa, sua entrada no cenário, o homem que a observa não têm o estofo duma história: a história é dada por De Niro-Monroe e pela câmara/Kazan.

O lirismo muito pessoal de Kazan se salienta na primeira cena de amor entre Monroe e Kathleen: tudo é muito medido, muito suave, uma densidade erótica lenta e soturna que contrasta com a agressividade sexual de boa parte das produções cinematográficas que vêm desde os anos 70. Somos enleados pelo amor necessariamente transitório de Monroe e Kathleen. Mas o lírico Kazan é aparentado mas diferente do exibido pelo escritor Fitzgerald. Espíritos correspondentes mas complementares em suas idiossincrasias.

Kazan utiliza o livro de Fitzgerald como mote para falar de suas experiências em Hollywood. Como ambos os artistas se assemelham em suas experiências, o brilhante roteiro de Harold Pinter refaz com clarividência vários episódios do romance. A música calculada e precisa de Maurice Jarre está encaixada na estética geral do filme. Robert De Niro como Monroe está despojado de seus artifícios e tem um de seus desempenhos antológicos. O elenco conta com nomes comuns nos filmes americanos de então, como a jovem (da época) Theresa Russell e os veteranos Tony Curtis e Robert Mitchum. Certas participações afetivas sobressaem: o americano Jack Nicholson (uma de suas poucas interpretações sussurradas) e a francesa Jeanne Moreau. Uma obra-prima que coroa o cinema maior de Kazan, um filme que completa aquilo que o enfarto de Fitzgerald deixou incompleto no romance.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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