Anne Brontë talvez seja a menos citada das três irmãs Brontë, mas escreveu uma obra-prima do feminino internacional, A moradora de Wildfell Hall (The tenant of Wildfell Hall; 1848). Não se pode aqui falar no feminismo, pois lhe falta a radicalização e a exacerbação dos ismos do século XX, mas diz-se no feminino: a figura de uma mulher como a personagem central dum universo de ficção, um espelho da realidade como quereria a própria Anne e também um de seus precursores essenciais, o francês Stendhal. Helen é a criatura que circula pelo mundo conservador rural da Inglaterra vitoriana, desafia os varões britânicos e seus conceitos, mas ela nunca perde sua essência feminina; Anne Brontë parece jogar-se de ponta-cabeça na alma de Helen; autobiografia espiritual, A moradora de Wildfell Hall tem desvios epistolares para compor uma estrutura complexa, paradoxal às vezes, justapondo-se entre um certo classicismo de pudores narrativos e algumas ousadias formais e morais que espantaram seus contemporâneos, fazendo com que Anne escrevesse um prefácio-defesa na segunda edição de seu livro, pois ela era, para todos os efeitos, uma mulher de seu tempo, determinada pelas formas éticas da Inglaterra de então — se a artista era uma perfuradora da moral vigente, a cidadã-fêmea de quando em quando recuava assustada diante do poder que emanava de sua arte, poder involuntário e irrefreável.

Helen, a cria de Anne, ama e desama, encontra e desencontra, mas a ficcionista a descobre, num pequeno canto narrativo, como uma mulher de sempre. A mulher-mãe. A maternidade no texto de Anne vai adquirindo um realce inesperadamente revolucionário. É num Natal que Helen confessa a seu diário.

“25 de dezembro.

No último Natal, eu estava noiva, com o coração transbordando de júbilo pelo momento e cheio de ardentes esperanças pelo futuro, embora misturadas com medos e agouros. Agora, sou esposa: meu júbilo está aquietado, mas não destruído; minhas esperanças estão menores, mas não esmaecidas; meus medos aumentaram, mas não foram totalmente confirmados, ainda; e, graças aos céus, sou também mãe. Deus me enviou uma alma a educar para o bem e me deu um novo e mais tranquilo júbilo, e esperanças mais fortes para me consolar.”

No texto original em inglês, Anne escreve: “and, thank heaven, I am a mother too. Good had sent me a soul to educate for heaven”. A personagem agradece ao “céu” o envio divino de um filho e pretende educar o infante para o próprio “céu” a quem agradece. A repetição do vocábulo “ heaven”, com suas sinuosidades e trânsitos de sentidos, cria um elemento circular no espírito narrativo. Infelizmente a tradução brasileira, temendo a repetição do termo, não soube captar o achado anglicano da escritora inglesa e preferiu esbarrar na trivial substituição de “heaven” pelo substantivo  “bem”.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)