Defeito de Construção

O ovo da serpente se coloca entre os filmes modestos de um genial cineasta

04/11/2018 21:54 Por Eron Duarte Fagundes
Defeito de Construção

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Abel Rosenberg é o nome do protagonista masculino de O ovo da serpente (Ormens ägg; 1979), um dos mais controvertidos trabalhos do sueco Ingmar Bergman. Rosenberg foi o sobrenome do casal central de Vergonha (1968), o outro filme do realizador ambientado na obscura época de guerra. Jan e Eva Rosenberg eram marido e mulher interpretados por Max von Sydow e Liv Ullmann em Vergonha. Em O ovo da serpente a norueguesa Liv Ullmann, atriz constante das obras de Bergman nas décadas de 60 e 70 do século XX, é uma artista de cabaré na terrível e empobrecida Berlim de 1923; ela é casada com Max, que se suicida no início do filme e é encontrado morto pelo irmão dele, Abel; um estranho e tenso relacionamento entre os cunhados Abel e Manuela, a personagem de Liv, vai costurar a visão disforme, inconstante e ambígua que Bergman apresenta da pré-formação do nazismo em O ovo da serpente; o ator norte-americano David Carradine desincumbe-se com garra do papel de Abel.

Produzido pelo italiano Dino de Laurentis, O ovo da serpente exacerba na grandiloquência de produção, o que é um dado não muito comum na filmografia do cineasta: Sorrisos de uma noite de amor (1955) e o superestimado Fanny e Alexander (1982) são outros dois exemplos que contrastam com os círculos fechados das encenações bergmanianas. Mas o pessimismo de Bergman sobre a natureza humana e a visão sombria que sua estética empresta a esse pessimismo são bem salientes em O ovo da serpente e ajudam a carregar a pesada e ameaçadora atmosfera da narrativa; a peça final do filme, com o discurso do doutor Vergérus para um assombrado e impotente Abel, buscando um irônico discurso cientificista pré-hitlerista mas também anti-hitlerista (“O senhor Hitler não tem capacidade intelectual, bem como lhe falta qualquer espécie de método”), é uma obra-prima dentro de um filme que exibe claros defeitos de construção. O próprio Bergman, em sua autobiografia, não se reconhece bem como diretor em O ovo da serpente: ele se perdeu bastante na opulência dos cenários, e isto se evidencia na montagem dura, áspera e insincera. Certas coisas, como aquelas imagens de um povo que se movimenta coletiva e mecanicamente com rostos tétricos e depressivos, estão entre os melhores achados bergmanianos. Dos atores, David está bem, mas Liv parece tão perdida quanto Bergman e sua pretendida imitação da americana Liza Minnelli numa aparição inicial cantando e despindo-se num palco de cabaré se afigura em pastiche próximo do execrável.

Saliente-se a paixão bergmaniana pelos saltimbancos, figuras de circo (Abel é ex-trapezista e Manuela foi do circo e sua vida obscura na Berlim pré-nazista não deixa de ser circense), desde as obras-primas dos anos 50 como Noites de circo (1953) e O rosto (1958). Sem ser um mau filme, muito longe disto, O ovo da serpente se coloca entre os filmes modestos de um genial cineasta; o que talvez tenha antigamente despertado a ira de muita gente seja a desproporção entre a pretensão histórica do realizador e a opacidade do resultado final.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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