O Instinto do Bebado

Um Inimigo do Povo tem uma construcao dramatica de extrema precisao e grande senso de movimentos de ideias

31/03/2021 19:38 Por Eron Duarte Fagundes
O Instinto do Bebado

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Não é a personagem central. Nem mesmo chega a ser um figurante do ponto de vista dramático. Sua voz é quase um elemento simbólico fugidio. No entanto, talvez sua entrada em cena dá a pista básica de tudo o que o autor aspira a dizer em seu drama. No quarto ato de sua peça Um inimigo do povo (1882) o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen chega ao nervo posicional de sua narrativa dramática na descrição minuciosa duma assembleia popular em que se reunirão as pessoas para ouvir de um lado o Dr. Stockman, médico que andou levantando a teoria de que as águas dum balneário da cidadezinha estariam contaminadas por uma bactéria infecciosa, e de outro lado, o prefeito, irmão do médico, político interessado sinuosamente em abafar a tese científica, tratada no meio político e empresarial como hipótese absurda e boateira; na arena ideológica, ume velha e constantemente atual guerra entre a saúde pública e as necessidades econômicas especialmente dos poderosos disfarçadas de necessidades populares. Então, ao longo desta cena, Ibsen insere a personagem do bêbado, que o leitor passa a conhecer unicamente por este substantivo adjetival; dá-se que, na porta de entrada, a primeira manifestação do bêbado é duma objetividade extrema: “Sou um contribuinte! E por isso tenho também o direito de dizer a minha opinião!” Antes que o bêbado possa dar a conhecer sua ideia do assunto na pauta da assembleia, a multidão, como coordenada previamente, impõe-lhe silêncio, pois “está bêbado! fora com ele!”. E o bêbado é expulso.

Um inimigo do povo tem uma construção dramática de extrema precisão e grande senso de movimentos de ideias e inserção de emoções. Ibsen, ligando seu teatro ao realismo crítico de seu tempo, expõe aí todos os problemas da realidade social que, curiosamente, tem atravessado os séculos, chegando aos dias de hoje. Dr. Stockman é a ciência, em princípio o lado certo da história, mas seu narcisismo e a crença de que as coisas certas são aprovadas pela maioria ajudam-no a perder a causa; o prefeito e certos empresários mostram o quanto setores da sociedade se lixam para a vida do homem comum e são estimulados pela necessidade de lucro gerado pelo capitalismo; e sobra também para a imprensa, em seu jogo duplo com o pensamento liberal e o medo de perder espaço. O voraz artigo denuncista do médico não é publicado; o Dr. Stockman é considerado inimigo do povo na assembleia, entre outras coisas porque declarou a massa ignara (é acusado de elitismo) e queria interditar um local turístico fonte de renda da localidade. Ibsen superpõe com rara habilidade os paradoxos em que todas as personagens estão imersas no calor dos fatos. E o faz com grande e surpreendente arte.

O bêbado não logra dar sua opinião. Mas o leitor (ou o assistente da peça) vai saber seu voto. “Pela unanimidade dos votos, salvo o de um homem embriagado, a assembleia declara que o Dr. Stockman da estação Balneária é um inimigo do povo.” O povo grita e aplaude diante desta decisão. No entanto, o essencial desta ironia refinada sob a qual navega um impiedoso sarcasmo o narrador ibseniano faz que a personagem do cidadão bêbado conflagre o paradoxo: mais que o médico, cheio de lógica e uma ideia que acredita poder fazer vingar no seio de seus concidadãos (e ainda que este médico, por sua lúcida agressividade e formas de expressão, possa ser um pouco o porta-voz em cena do autor), é no fundo o bêbado quem tem razão entre as loucuras da sociedade; só bebendo para ver tudo o que acontece e aguentar.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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