A Morte de Emma na Sociedade Francesa

Flaubert, o romancista que quis fazer de Madame Bovary tanto um autorretrato quanto um retrato social e proto-historico

07/04/2020 13:52 Por Eron Duarte Fagundes
A Morte de Emma na Sociedade Francesa

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Emma se envenena no capítulo VIII da terceira parte do romance Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert. Depois que Rodolphe, um de seus amantes, lhe nega o empréstimo de três mil francos para salvá-la da ruína financeira em que se meteu por causa do outro amante, Léon, Emma execra Rodolphe, numa frase-maldição; “—Tu ne les as pas!... J’aurais dû m’épargner cette dernière honte. Tu ne m’as jamais aimée! Tu ne vaux pas mieux que les autres!” (“—Tu não os têm!... {ela refere-se à negativa do dinheiro por Rodolphe}. Eu deveria ter-me poupado esta derradeira vergonha. Tu jamais me amaste! Tu não vales mais que os outros!”). Pouco depois, neste mesmo capítulo, para espanto de seu bom marido Charles, que julgava sempre ter feito tudo corretamente (“—N’étais-tu pas heureuse? Est-ce ma faute? J’ai fait tout ce que j’ai pu pourtant!” diz Charles è envenenada Emma. “Não eras feliz? É minha culpa? Eu, no entanto, fiz tudo o que pude.”), Emma ingere arsênico; seu desespero conjugal, existencial e sexual apontava a própria angústia da sociedade francesa do século XIX. Muitos anos depois, com Odette, a “femme entretenue” que se casa com Swann, Marcel Proust, outro escritor francês, ressuscita os costumes do mundo a partir da mulher numa outra visão: Odette é a ressurreição de Emma numa sociedade ainda burguesa mas transformada a multiforme, onde os preceitos morais arcaicos podem conviver facilmente com a liberdade dos libertinos que juntam seus instintos ao conservadorismo sempre premente das estruturas sociais.

No capítulo seguinte à morte de Emma, consumada nas três frases que fecham o capítulo XVIII, Flaubert, o romancista que quis fazer de Madame Bovary tanto um autorretrato quanto um retrato social e proto-histórico, põe diante do leitor, com lentidão calculada e severos detalhes de observação, os circunstantes da morte de um ser humano, Emma ou qualquer outro. “Il y a toujours après la mort de quelqu’um comme une stupéfation que se dégage, tant il est difficile de comprendre cette survenue du néant et de se résigner à y croire.” (“Há, após a morte de alguém, como uma estupefação que se libera, tanto é difícil compreender esta aparição inesperada do nada e da resignação de crer neste nada.”). Então, o vale de choros dos sobreviventes: Charles Bovary acima de todos. A figura do padre é utilizada com propriedade pelo narrador. “L’ecclésiastique le prit par-dessous le bras pour lui faire un tour de promenade dans le jardin. Il discourait sur la vanité des choses terrestres. Dieu était bien grand, bien bon: on devait sans murmure se soumettre à ses décrets, même le remercier.” (“O eclesiástico o tomou por baixo do braço para o levar a uma caminhada em passeio no jardim. Ele discorria sobre a vaidade das coisas terrenas. Deus era muito grande, muito bom: devíamos sem murmúrio nos submeter aos decretos dEle, até mesmo agradecer-lhe.”). Charles revolta-se; expande seu ateísmo, que é um pouco o ateísmo desesperançado do narrador: “—Je l’exècre, votre Dieu!” (“—Eu o execro, vosso Deus!”). De uma certa maneira, o cineasta sueco Ingmar Bergman, na cena da agonia de Agnes em seu filme Gritos e sussurros (1972), recaptura Flaubert, no conjunto de situações coordenado pela personagem do padre, que ora: “—Deus, nosso pai, em sua infinita sabedoria, chamar-te de volta, na flor da tua juventude. Antes disso, achou-te Ele digna de carregar um pesado e demorado sofrimento. Submeteste-te com paciência e sem queixas, através da morte de Teu Senhor Jesus Cristo, na cruz.” Como o padre de Flaubert, o de Bergman também julga que devemos agradecer a Deus o sofrimento purificador. Se Charles explode sua descrença apavorada, uma personagem masculina, em Bergman, diz a uma das irmãs sobreviventes: “—Não posso perdoar-te nada. Mas podes perdoar-te a ti mesma.”

Em Madame Bovary aquele Charles do início da narrativa, surpreendido por um narrador incógnito que depois desaparecerá (“Nous étions à l’étude”, “Estávamos em aula”), ingênuo, bobo, motivo de zombaria pelos colegas por suas trapalhadas de dicção (“on hurlait, on aboyait, on trépignait, on répétait: Charbovari! Charbovari!” (“ganiam, latiam, sapateavam, repetiam: Charbovari! Charbovari!) é amargamente devastado pelos azares de sua vida ao longo da história que se movimenta em Madame Bovary.

Traído várias vezes por Emma sem saber os motivos (fez tudo certo, afinal), Charles é um corpo que chafurda naquilo que o romance de Flaubert exibe de mais autêntico, o lado humano estilizado. Não é por acaso que, quase ao final, Voltaire é referido em uma das versões menos limpas de sua morte. “il fulminait contre l’esprit du siècle, et ne manquait pas, tous les quinze jours, au sermon, de raconter l’agonie de Voltaire, lequel mourut en dévorant ses excréments, comme chacun sait.” (“ele fulminava contra o espírito do século, e não deixava, em todos os quinze dias, no sermão, de contar a agonia de Voltaire, que morreu devorando os próprios excrementos, como todos sabemos.”). Lenda ou verdade, a imagem de Voltaire, o pensador francês por excelência, o iluminista refinado, comendo seus excrementos à hora da morte, é um signo para Madame Bovary, onde o estilo de escrever oculta e aproxima do leitor as fezes duma sociedade agonizante.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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