Um Observador de Seu Tempo
As Noites Revolucionárias é a testemunha de um tempo histórico: a Revolução Francesa já passou, mas o texto que a exibe permanece
As relações entre o jornalismo e a literatura têm umas primícias em As noites revolucionárias (Les nuits révolutionnaires; 1794), em que o escritor francês Restif de la Bretonne acompanhou, dia a dia, os passos da Revolução Francesa, sem deixar de lado sua habilidade para estilizar o ato de contar histórias. Eram dias violentos, em sangue e palavras, aqueles. O autor não abandona seu realismo delirante, do qual, uma década antes, ele nos dera o estupendo A descoberta austral por um Homem-voador ou o Dédalo Francês (1781), relato perturbador do hibridismo dos seres animais, entre eles o homem, voador ou não. A atualidade da visão de mundo de Restif se materializa sempre, pois nossa animalidade não se despega de nós. São dias violentos, em sangue e palavras: o sangue está nas ruas e as palavras estão hoje nas redes sociais. O narrador de As noites revolucionárias é a testemunha de um tempo histórico: a Revolução Francesa já passou, mas o texto que a exibe permanece. Restif quer ver tudo e escrever sobre tudo o que vê: é jornalista no ato em si mas aspira ao posto de historiador pela importância das cenas. Converte-se no grande escritor pela habilidade da escrita, e por uma junção: enquanto anota os fatos históricos, vai compondo pequenas histórias (fábulas) que podem ou não ter acontecido tal como as relata, mas cujo sentido se casa com os tempos que o escritor anota quase como um documentário, quase como se a televisão e o cinema já existissem para que a realidade pudesse sobreviver como imagem. A imagem: Restif vaga pelas ruas e topa com cadáveres ou cenas cruas de degola e estupro, algumas pessoas lhe são conhecidas. Se Restif é um fazedor de sonhos do século XVIII, como asseverou o ensaísta Jacques Lacarrière (a propósito, um articulista de Le Magazine Littéraire cognomina Lacarrière, falecido há mais de dez anos, de “encantador”, substantivo, no sentido mágico-artístico, claro), ele é também o homem-visão dos tempos maus em As noites revolucionárias.
Nascido na burguesia da campanha francesa, nota-se que La Bretonne tem uma certa dificuldade em aceitar os devoramentos da Revolução Francesa. No fundo, ele talvez seja um conservador e monarquista. Mas o paradoxo é seu fascínio pelos novos tempos, sanguinários e verborrágicos. Ele é um aristocrata burguês. Chega a dizer que o despotismo não promana da ambição dos poderosos mas é tributário da insolência da canalha. Cheguem para lá, vagabundos! “Espetáculo de horror! Vejo duas cabeças na ponta de uma lança!...” “Nesses tempos conturbados um acusado era sempre culpado.” É a França do fim do século XVIII, é o Brasil da segunda década do século XXI? Então, um entreato do narrador: “A noite caiu enquanto eu caminhava a esmo. Retornei à cidade: fui ao palácio de Orléans.”
Como hoje. No calor do dia, após algum ato amoroso de taverna e algumas horas antes de tangenciar na vida a morte sob uma arma apontada para um carro em movimento, se desfila diante do rio Guaíba murado para as reformas da margem destruída pelo temporal do fim de janeiro. Que não se viu, pois se estava em outro Janeiro, o Rio.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br