A Amargura Dramtica de Balzac

O Pai Goriot (1835), de Balzac, uma autntica histria da sociedade francesa de seu tempo

20/03/2015 14:31 Por Eron Duarte Fagundes
A Amargura Dramática de Balzac

tamanho da fonte | Diminuir Aumentar

 

Comecemos pela palavra do economista francês Thomas Piketty: “Publicado em 1835, O pai Goriot é um dos romances mais célebres de Balzac. Apresenta, sem dúvida, uma das expressões literárias das mais bem-sucedidas sobre a estrutura da desigualdade no século XIX, desvelando o papel central desempenhado pela herança e pelo patrimônio.” Revestindo o economista com os paramentos do crítico literário, Piketty expõe com clareza os ossos da trama de Balzac e o modo como estes ossos fazem o próprio sentido da trama; o discurso perverso e cínico de Vautrin é o centro do interesse analisador de Piketty. “O mais assustador no discurso de Vautrin é a exatidão das cifras e do contexto social que ele desvela.” Sendo, pois, o texto de Piketty uma das melhores coisas que li sobre o pensar literário nos tempos atuais (e inesperadamente vindo duma dissertação econômica), eis que O capital no século XXI (2013) é um bom estímulo para revisitar alguns clássicos literários ali esmiuçados à luz das ciências econômicas, entre eles O pai Goriot, releitura que não propõe nenhum esnobismo intelectual mas um confronto, talvez parecido com aquele que a personagem de Balzac, Eugênio de Rastignac, adota no fim do livro.

O pai Goriot (1835) é uma autêntica história da sociedade francesa de seu tempo. É uma história cujo centro cênico seu narrador —uma terceira pessoa muito particular de Balzac— concentra numa pensão no coração de Paris, casa que o próprio narrador cognomina burguesa. Ali o leitor dá com o velho Goriot, um antigo fabricante de massas e que sacrificou seu luxo para manter o luxo de suas duas filhas. Também topamos com Eugênio de Rastignac, um jovem provinciano que chega a Paris para fazer-se na vida, como tantos interioranos mundo afora rumo das capitais. Quem desilude previamente Eugênio é a figura de Vautrin, um obscuro e estranho frequentador da pensão e que põe as cartas na mesa: um casamento de conveniência com uma herdeira rica é um caminho mais tranquilo e mais rendoso que anos de estudo e de trabalho. Eugênio, em sua pureza provinciana, assusta-se com a lucidez diabólica de Vautrin, cuja aparição em O pai Goriot é quase uma pura simbologia, uma espécie de diabo que se encarna num homem. (Lembremos que em Os irmãos Karamazov, 1880, do russo F. M. Dostoievski, o diabo não chega a disfarçar-se de homem, aparece como diabo mesmo). No entanto, a história do velho Goriot, usado e abandonado pelas filhas, uma agonia final a que Eugênio assiste pateticamente, algo em que Balzac mistura a amargura dos textos filosóficos e os exageros dos melodramas, vai abrir os olhos do rapaz de interior para aquilo que Vautrin se esforça por dizer: o mundo é um atoleiro moral.

Logo no início, diante da desconfiança do pupilo, Vautrin abre seu arsenal irônico.

“—No entanto, diz Eugênio, com um ar de nojo, sua Paris é assim um atoleiro.

—E um estranho atoleiro, tornou Vautrin. Aqueles que se sujam dentro de carruagens são tidos por gente honesta, os que se sujam andando a pé são larápios. Tenha a desventura de tomar de alguém qualquer coisa, você é exibido na praça do Palácio da Justiça como uma curiosidade. Roube um milhão, você é marcado nos salões como a própria virtude. Você paga trinta milhões à gendarmeria e à justiça para manter tal moral. Beleza!” (NOTA 1).

(O texto acima lembra um pouco os conceitos morais de um conto de Machado de Assis, Suje-se gordo, incluída no volume Relíquias da casa velha, 1906. “Quer sujar-se? Suje-se gordo!” exclama uma personagem machadiana, um jurado que mais se indigna porque o réu roubara pouco, se sujara por tão pouco, “duzentos mil réis”).

A ironia de Vautrin se refina no mesmo compasso das indagações perturbadas de Eugênio. Vautrin vai apresentar-se aos poucos a Eugênio, mas transversamente.

 “—Você quer certamente saber quem sou, o que fiz, ou o que faço, replicou Vautrin. Você é demasiado curioso, meu rapaz. Vamos, calma lá! Você precisa ouvir o que os outros dizem! Tive desventuras. Primeiro escute-me, depois você me responderá. Eis minha vida anterior em três palavras. Quem sou? Vautrin. Que faço? O que me dá prazer. Passemos adiante. Quer conhecer meu caráter? Eu sou bom com os que me fazem bem ou cujo coração fala ao meu. A esses tudo é permitido, eles podem chutar-me os ossos das pernas sem que eu lhes diga: Cuidado! Mas, por favor! sou malvado como o diabo com os que me atormentam, ou que não me descem bem.” (NOTA 2).

Então, depois dos desprezíveis gestos dos convivais ante a morte do pai, chegamos àquele ímpeto final de Eugênio, um dos achados balzaquianos mais notáveis.

“Rastignac, posto só, deu alguns passos na direção da parte alta do cemitério e fitou Paris, tortuosamente deitada ao longo das duas margens do Sena, onde começavam a bilhar as luzes. Seus olhos se prenderam quase avidamente entre a coluna da praça de Vendôme e a cúpula dos Inválidos, bem onde vivia este belo mundo no qual ele pretendera penetrar. Ele lançou então àquele burburinho de abelha um olhar que parecia consumir-lhe por antecipação o mel e exclamou estas palavras grandiosas: ‘Agora, é entre nós!’

E como primeiro ato de desafio que ele empunhava à sociedade, Rastignac foi jantar em casa de madame de Nucingen.” (NOTA 3).

As filhas más do velho Goriot não têm os aspectos sorumbáticos dos Karamazov de Dostoievski. São francesinhas inconsequentes, mas igualmente amorais. A ambiguidade da relação entre Vautrin e Eugênio levou o crítico Paulo Rónai a aventar um certo homossexualismo do velho diabo, o que no fundo pode estar escondendo uma vingança cristã do velho ensaísta balzaquiano; mas, de fato, algumas palavras assopradas por Vautrin parecem soltar a língua diretamente dentro da orelha de Eugênio, havendo uma certa incômoda aceitação por parte do herói balzaquiano. No entanto, importa? Fundamental é a maldade social descrita. Vingança paracristã mesmo é a maneira como Eugênio, com toda a petulância de um jovem ex-provinciano, arrosta esta maldade social no fim da narrativa.

 

NOTA 1. “—Mais, dit Eugène avec un air de dégoût, votre Paris est donc un bourbier.

—Et un drôle de bourbier, reprit Vautrin. Ceux qui s’y crottent en voiture sont d’honnêtes gens, ceux qui s’y crottent à pied sont des fripons. Ayez le malheur d’y décrocher n’importe quoi, vous êtes montré sur la place du Palais de Justice comme une curiosité. Volez un million, vous êtes marqué dans les salons comme une vertu. Vous payez trente millions à la Gendarmerie et à la justice pour mantenir cette morale-là. Joli!”

NOTA 2. “—Vous voudriez bien savoir qui je suis, ce que j’ai fait, ou ce que je fais, reprit Vautrin. Vous êtes trop curieux, mon petit. Allons, du calme. Vous allez en entendre bien d’autres. J’ai eu des malheurs. Ecoutez-moi d’abord, vous me répondrez après. Voilà ma vie anterieure en trois mots. Qui suis-je? Vautrin. Que fais-je? Ce qui me plaît. Voulez-vous connaître mon caractère? Je suis bon avec ceux qui me font du bien ou dont le coeur parle au mien. A ceux-là tout est permis, ils peuvent me donner des coups de pied dans les os de jambes sans que je leur dise: Prends garde! Mais, nom d’une pipe! je suis méchant comme de diable avec ceux qui me tracassent, ou qui je ne me reviennent pas.”

NOTA 3. “Rastignac, resté seul, fit quelques pas vers le haut du cemitière et vit Paris tortuesement couché le long des deux rives de la Seine où commençaient à briller les lumières. Ses yeux s’attachèrent presque avidement entre la colonne de la place Vendôme et le dôme des Invalides, là où vivait ce beau monde dans lequel il avait voulu pénétrer. Il lança sur cette ruche bourdonnante un regard qui semblait par avance en pomper le miel, et dit ces mots grandioses: ‘A nous deux maintenant!’

Et pour premier acte du défi qu’il portait à la société, Rastignac alla dîner chez madame de Nucingen.”

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

Linha
tamanho da fonte | Diminuir Aumentar
Linha

Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

Linha
Todas as mterias

Efetue seu login

O DVDMagazine mantm voc conectado aos seus amigos e atualizado sobre tudo o que acontece com eles. Compartilhe, comente e convide seus amigos!

E-mail
Senha
Esqueceu sua senha?

Não é cadastrado?

Bem vindo ao DVDMagazine. Ao se cadastrar voc pode compartilhar suas preferncias, comentar ou convidar seus amigos para te "assistir". Cadastre-se j!

Nome Completo
Sexo
Data de Nascimento
E-mail
Senha
Confirme sua Senha
Aceito os Termos de Cadastro