O Pequeno e Belo Cinema Portugues
Ha um pequeno e belo cinema portugues muitas vezes oculto do espectador brasileiro
Há um pequeno e belo cinema português muitas vezes oculto do espectador brasileiro (pequeno que se volta para as pequenas coisas, belo porque extrai sua beleza destas pequenas coisas). Interessado nas pequenas questões da vida: o cotidiano de aldeia. Atrás das câmaras está a sensibilidade do realizador que deve dar conta de buscar o interesse do observador. Lobo e cão (2022), de Cláudia Varejão, é um exemplar deste cinema aldeão, remoto, cujo navegar pelos sentimentos de algumas personagens de um remoto luso tão distante de nós acaba por tocar-nos, porque Cláudia tem o dom de, interessando-se pelo humano, transformar tudo o que se vê, sente e vive em imagens significativas.
Não faz muito se pôde ver por aqui Alma viva (2022), da portuguesa Cristèle Alves Meira, também uma experiência de aldeia. Tanto no filme de Cristèle quando neste de Cláudia há o humanismo e a vida mesmo, o artista passa a ver o dia-a-dia de seu povo entre a objetividade e o mágico. Lobo e cão se atreve bastante nestas relações mágicas do cinema: há cenas cruas e reais e outras que se assombram em certas deformações surrealistas, contrastes que a cineasta sabe equilibrar em sua narrativa.
Conta Cláudia Varejão que, ao chegar a São Miguel com a ideia de filmar aquela comunidade, deu com um encontro que lhe pareceu improvável: de um lado, um grupo de pescadores de conduta muito tradicional (religião, moral rigorosa, etc.), de outro os jovens irreverentes, entre estes muitas meninas trans. Lobo e cão lida com estes antagonismos que habitam a velha aldeia: Ana descobre o mundo, especialmente o mundo dos desejos, seu amigo homossexual e decoradíssimo de travesti, uma garota da cidade cujo corpo Ana deseja e dela se aproxima carnalmente, entre familiares antigos, procissões, imagens de santo, rezas clássicas. Cláudia filma com paixão tudo isto.
É certo que os aspectos fugidios da realização, sua lentidão específica, o teor de suas criaturas podem opor uma barreira ao espectador do lado de cá do mundo. Mas, vencidos os primeiros passos, se terá dado com um pequeno belo filme cheio de energia reservada e sutileza.
Cláudia, a diretora, pertencente à comunidade gay, engaja seu filme na luta vital daquelas pessoas, atores que interpretam vivendo o que são. A questão da sexualidade a partir da atração entre pessoas do mesmo sexo tem sido constante em algumas obras cinematográficas recentes. O inglês Blue Jean (2022), de Georgia Oakley, numa história de época, observa a hipocrisia moral para com o lesbianismo. Estranha forma de vida (2023), do espanhol Pedro Almodóvar, um faroeste contemporâneo em torno de dois machões que se amam, carnalmente. Lobo e cão põe em cena ao mesmo tempo o lesbianismo e o homossexualismo masculino. Todas as formas de amor valem.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br