Entre o Amor e o Pecado

Tess de Polanski talvez seja o mais belo filme romantico jamais feito: o mais belo e o mais agudo

30/08/2019 14:23 Por Eron Duarte Fagundes
Entre o Amor e o Pecado

tamanho da fonte | Diminuir Aumentar


 

Revisto  a uma distância de décadas da data de sua realização, Tess de Polanski (Tess; 1979), rodado na Inglaterra pelo cineasta polonês Roman Polanski, aparece em todo o seu esplendor de detalhes em que tudo contribuiu para que o filme desse certo, estética e emocionalmente; segundo o próprio realizador, ele estava na época no fundo do poço, longe se iam os anos de seu prestígio junto à crítica, fora banido estrondosamente dos Estados Unidos por conduta sexual indecorosa, perdera sua amada Sharon Tate num ato-vândalo de fanáticos religiosos; com este espírito para baixo Polanski começou a conceber e a realizar sua adaptação do romance Tess d’Uberville (1895), escrito pelo inglês Thomas Hardy para bombardear as instituições vitorianas. Curiosamente, conta a História que Hardy ao tempo em que compôs sua narrativa tinha lá seus problemas privados e suas frases nasceram mesmo de sua depressão. Tess, escrito e filmado por homens em estado desesperado.

Tudo funciona maravilhosamente em Tess de Polanski, mas é inegável que ao pensarmos no filme, a primeira imagem que vem à cabeça é a da atriz alemã Nastassja Kinski. A candura e o romantismo que a intérprete empresta à personagem, sua desenvoltura para caminhar pelos cenários de época (em alguns casos, estradas de época, como aqueles cruzamentos de várias vias de chão batido que vão dar a uma propriedade particular, como aquela elaboradíssima sequência narrativa que abre o filme), seu olhar magnético, os figurinos que se colam em seu finíssimo corpo de camponesa, os trabalhados e despojados gestos de seus diálogos com sotaque local — Nastassja é a alma de Tess de Polanski, é praticamente uma coautora com o cineasta, Nastassja é a imagem que perdura e persiste no filme ao longo dos decênios.

Tess de Polanski talvez seja o mais belo filme romântico jamais feito: o mais belo e o mais agudo. Polanski, bastante apreciado por obras mais sombrias como Repulsa ao sexo (1965) ou O bebê de Rosemary (1968), envereda para um filme luminoso, onde os grandes planos abertos das paisagens agrícolas do interior da Inglaterra e densas panorâmicas de notável plasticidade abandonam aparentemente o registro mais perverso do cinema de realizador. Aparentemente: pois Polanski segue fazendo uma análise cruel do comportamento humano, executando tudo com o rigor e o despojamento de sempre, ainda que agora abrindo para uma grandiloquência de antanho capaz de devorar o olhar do observador.

Atualizando a investigação social de Hardy, Polanski, que dedica seu filme à sua falecida amada Sharon (quando leu o livro, o cineasta pensou em dar-lhe o papel central; mas aí sobreveio o trágico assassinato de Sharon; quem viu Era uma vez em... Hollywood, 2019, do americano Quentin Tarantino, especialmente ao evocar a cena da livraria, vai entender parte deste processo da vida do casal), aproveita para dissecar a eternidade da condição feminina. Se o espectador, mesmo o deste terceiro milênio, pensar bem, verá que esta história, passada no fim do século XIX, é reveladora de que o comportamento das pessoas nas relações entre homens e mulheres não mudou em sua essência. O tabu da virgindade parece mesmo sepultado. Porém interiormente homens e mulheres ainda agem, interiormente, como Angel e Tess na cena em que ambos confessam seus pecados anteriores ao casamento. É mais fácil ainda para uma mulher aceitar que seu amado tenha tido seu corpo devassado por outra do que ele acatar o contrário; esqueçamos a questão da virgindade e pensemos numa confissão de traição. Ingenuamente, Tess, depois que Angel falou de sua vida dissoluta por alguns dias, cuidou que estaria contando a Angel o mesmo tipo de pecado; não contava com o peso social que altera a situação de um pecado aparentemente igual.

Polanski, seus roteiristas, seu fotógrafo, seu figurinista captam com extrema precisão e beleza os mecanismos de imagem do texto de Hardy. Um exemplo elevado desta concepção estética de verter as imagens-palavras de um livro em imagens-filme é a novamente evocada sequência da troca de confissões entre Angel e Tess. Observou um dos roteiristas do filme que o romancista simplesmente escreveu que Tess contou a Angel a sua vida. De fato, lá está: “iniciou a história do seu conhecimento com Alec d’Uberville e dos seus resultados, murmurando as palavras sem hesitar, de pálpebras bem abaixadas.” Que teve de fazer o roteirista? Substituir tudo isto por palavras na boca de Tess/Nastassja: ela falando de sua vida difícil, da pobreza familiar, dos falsos parentes ricos, do falso primo que a seduziu, do filho que morreu em bebê. Hardy deixou suspensos os detalhes desta confissão e anota no início do capítulo seguinte: “A narrativa terminou; terminaram mesmo as repetições e explicações secundárias.” E aí Hardy constrói um parágrafo primoroso em que descreve o ambiente onde se dá a confissão, mostrando as metamorfoses que a situação emocional trazia para o cenário ao mesmo tempo em que este cenário permanecia o mesmo, imutável. “O brilho da garrafa d’água preocupava-se apenas em resolver um problema cromático.” No entanto, diz Hardy, “a essência das coisas transformara-se.” Polanski capta fascinantemente estas mutações; durante a confissão de Tess, a alteração de foco do primeiro plano (Tess, a falante) para o segundo plano (Angel, o ouvinte) se dá intermitentemente, com sutileza, acrescendo paulatinamente as alterações emocionais. O parágrafo de Hardy tem um correspondente visual na maravilhosa edificação dos objetos cênicos por Polanski: tem-se a certa altura a impressão ou ilusão de espectador  de que o romance foi escrito para que Polanski um dia o filmasse.

Uma das personagens definitivas da história do cinema, a Tess da jovem Nastassja (ela tinha então cerca de vinte anos de idade) vive entre o amor de Angel e o pecado de Alec; o amor não a salva do pecado e ela sucumbe ao peso da sociedade de seu tempo.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

Linha
tamanho da fonte | Diminuir Aumentar
Linha

Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

Linha

relacionados

Todas as máterias

Efetue seu login

O DVDMagazine mantém você conectado aos seus amigos e atualizado sobre tudo o que acontece com eles. Compartilhe, comente e convide seus amigos!

E-mail
Senha
Esqueceu sua senha?

Não é cadastrado?

Bem vindo ao DVDMagazine. Ao se cadastrar você pode compartilhar suas preferências, comentar ou convidar seus amigos para te "assistir". Cadastre-se já!

Nome Completo
Sexo
Data de Nascimento
E-mail
Senha
Confirme sua Senha
Aceito os Termos de Cadastro