O Amor a Velhice

O comeco das confissoes amorosas em Carta a D. Historia dum Amor de Andre Gorz, perturbador

08/07/2015 17:12 Por Eron Duarte Fagundes
O Amor a Velhice

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André Gorz foi um pensador nascido na Áustria cuja vida intelectual se passou toda na França. Casado com sua amada Dorine desde muito jovem e vendo-a na velhice definhar a ponto de suspeitar que teria de sobreviver a ela, ele planejou o suicídio de ambos em 22 de setembro de 2007. Foi um choque para o mundo intelectual deste início de milênio. Boa parte das explicações de seu gesto (explicações sempre irracionais, é verdade, ainda que vindas de um cultor do cérebro) surgiram depois, quando publicaram sua obra testamentária, Carta a D. História dum amor (Lettre à D. Histoire d’un amour; 2007), onde o filósofo extravasou literariamente seu grande amor à mulher, misturando ali evocações passadas deste amor onde a culpa era uma dor que nem a ardência das paixões senis apaziguava.

O começo das confissões amorosas de Gorz é perturbador. “Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor de seu corpo contra o meu é capaz de preencher.” É, na verdade, devastador o amor que o homem da inteligência, Gorz, sente por sua Dorine, a D. do título da epístola; um amor devastado pelo tempo, um tempo que é devastado ao mesmo tempo por “um vazio devorador” e “pelo calor do corpo” da velha amada. Marguerite Duras evoca algo parecido no primeiro parágrafo de seu romance O amante (1984), a possibilidade de o amor amar intensamente a velhice do objeto amado. Escreve Duras: “Um dia, eu já estava velha, no saguão dum lugar público, um homem veio em minha direção. Ele se deu a conhecer e me disse: ‘Eu conhecia você desde sempre. Todo o mundo diz que você era bela quando jovem, eu venho para lhe dizer que de mim eu a acho mais bela agora que quando você era jovem, eu amava menos seu rosto de jovem mulher que esse que você tem agora, devastado.” O adjetivo “devastado” tem um sentido metafísico no texto de Duras: podemos aplicar este sentido às visões de Gorz para uma decrepitude física da amada que o amante teima em não ver. Ama-se a velhice não porque ela seja velhice, mas porque ela é a eternidade e a transcendência. Há um surpreendente aprendizado humano no amor suicida de André e Dorine, transubstanciado nesta carta-suicida que paradoxalmente é uma ode à autenticidade da vida.

No fim de seu discurso de amor, Gorz torna a anotar: “Você acabou de fazer oitenta e dois anos. Continua bela, graciosa e desejável. Faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca.” Ao reanotar, Gorz aumenta o delírio de sua dor. E acresce a suas evocações um pesadelo dolorido: “À noite eu vejo, às vezes, a silhueta de um homem que, numa estrada vazia e numa paisagem deserta, anda atrás de um carro fúnebre. Eu sou esse homem. É você que esse carro leva. Não queria assistir à sua cremação; nem quero receber a urna com as suas cinzas.” A sentença adiante de Gorz prenuncia o duplo suicídio: “Não desejaríamos sobreviver um à morte do outro.” No fim do livro de Duras, mudando da primeira pessoa inicial para uma terceira pessoa onisciente, a romancista escreve: “Ele lhe dissera que era como antes, que ele a amava ainda, que ele não poderia jamais cessar de amá-la, que ele a amaria até a morte.” Então, após a data final da carta de Gorz, 6 de junho de 2006, as luzes se apagam. Como depois da exibição de um filme: já não há nem mesmo o calor de um corpo para preencher o vazio devorador.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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