A Linguagem Furtada
O ritmo de Drummond e? diverso das tensoes liricas do portugues Fernando Pessoa
No primeiro verso de O padre, a moça, um dos poemas do livro Lição de coisas (1962), o leitor depara: “O padre furtou a moça, fugiu.” O poema de Carlos Drummond de Andrade gerou, em 1966, o filme cinemanovista O padre e a moça, de Joaquim Pedro de Andrade. Este poema e especialmente estes versos são um bom ponto de partida para analisar a poesia de Drummond: como um padre, o poeta furta a linguagem, que é sua moça, com quem ele faz suas artes. Se A rosa do povo (1945) foi uma avalancha de retrato do mundo no pós-guerra, Lição de coisas é uma evocação posterior, desencantada, crônicas (em que ele foi também mestre de nossa prosa) transformadas em formas poéticas, o universo no abismo do cotidiano. “A bomba é ferrotriste é cheia de rocamboles.” Contemporâneo tanto de Oswald de Andrade quanto de João Guimarães Rosa, ele inventa o texto usando o coloquial mas sem amarrar-se no coloquial.
O ritmo de Drummond é diverso das tensões líricas do português Fernando Pessoa, talvez o único em língua lusa que se ombreia com o brasileiro Drummond. “Na mesa interminável comíamos o bolo / interminável / e de súbito o bolo nos comeu.” Drummond recria o ritmo brasileiro, novo e único, antropofágico, em que o poeta parece comer a linguagem que o come. Mesmo que a elegância renascentista nunca abandone as frases drummondianas.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br