O Último Suspiro de um Gênio
O português Manoel de Oliveira foi um dos gênios do cinema no século XX. Diz-se que é o século do cinema por excelência
O português Manoel de Oliveira foi um dos gênios do cinema no século XX. Diz-se que é o século do cinema por excelência. A literatura, arte narrativa mais prestigiada, tinha suas transformações; o cinema nascia. Oliveira morreu aos 106 anos, ainda disposto a fazer filmes, que é algo que exige um esforço físico maior do que em muitas outras artes; daí a surpresa de ver um homem passado dos cem anos movimentando-se num set de filmagem, algo muito mais incômodo do que sentar-se a uma escrivaninha para compor um texto, mesmo que o autor tenha de manusear livros em sua pesquisa. O derradeiro filme de Oliveira, Gebo e a sombra (Gebo et l’ombre; 2012), mantém a integridade de seu cinema, buscando sempre um exercício cinematográfico de rigor formal e nunca se deixando levar pelas facilidades do prestígio internacional adquirido nas duas últimas décadas de sua filmografia. Consta do noticiário internacional que um dos projetos de Oliveira era filmar o conto A igreja do diabo, do brasileiro Machado de Assis; é pena que a morte tenha impedido a concretização da realização, pois este articulista, admirador do conto de Machado e do cinema de Oliveira, teria muita curiosidade.
Gebo e a sombra foi rodado na França, embora sua história seja portuguesa, escrita pelo dramaturgo Raul Brandão, e tenha até um João em cena. Oliveira mantém a base da estrutura teatral do original, fazendo uma espécie de concentração de cenários, umas intensas e intermináveis sequências de diálogos entre as personagens e um despojamento bressoniano em seu ascetismo da encenação; as marcações teatrais da luz de filmar de Oliveira se alicerçam especialmente nas entradas e saídas de cena das criaturas do filme, nunca perdendo a continuidade da ação e os aspectos inteiriços da narrativa. Apesar de suas fortes ligações com teatro e literatura, Gebo e a sombra vai exibir uma densidade cinematográfica que nunca se desfaz ou amolece.
O elenco mistura certas habituais figuras do cinema de Oliveira, como os intérpretes lusos Ricardo Trepa (neto do realizador), Luís Miguel Cintra e Leonor Silveira, falando em francês, naturalmente. E atores internacionais. Como o francês Michael Lonsdale no papel central. Uma aparição sempre nostálgica da veteraníssima francesa Jeanne Moreau. E no principal papel feminino, a mulher de Gebo, a italianíssima Claudia Cardinale, tão velhinha que o olho do espectador tem dificuldade de associá-la à intérprete juvenil e fresca de obras fundamentais do cinema, como A moça com a valise (1961), de Valerio Zurlini, e O leopardo (1963), de Luchino Visconti.
As pequenas relações familiares de Gebo e a sombra são tensas de intensidade dentro de seus minúsculos quadros. Um velho é constantemente roubado pelo filho; ocultando a delinquência do filho, o velho vive conflitando-se com a esposa e no fim acaba sendo preso como ladrão, invertendo-se os papéis entre o filho e o pai. As coisas se desenrolam dentro duma estrutura verbal quase sartreana em Gebo e a sombra. As sutis intercalações éticas obedecem a estas fumaças filosóficas que o cinema de Oliveira sabe expor tão bem.
É verdade que sua secura ou mesmo sua rigidez impede a aproximação de muitos cinéfilos. Dentro da linha do francês Robert Bresson, Manoel de Oliveira constrói meditações cinematográficas que se esforçam por erigir no cinema uma escrita antes que um espetáculo. Como ele afirmou certa vez em uma entrevista.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br