Godard: O Homem, A Mulher e um Tempo Historico

Os pequenos e ironicos maneirismos de Godard em Masculino feminino sao elaboradissimos e agudos

17/02/2024 02:33 Por Eron Duarte Fagundes
Godard: O Homem, A Mulher e um Tempo Historico

tamanho da fonte | Diminuir Aumentar

 

Jean-Luc Godard, em Masculino feminino (Masculin féminin; 1966), fala dum homem e duma mulher, ambos bastante jovens, em sua descoberta do mundo num tempo de ebulição. Paul está na figura física do ator Jean-Pierre Léaud, que o espectador histórico do cinema já conhece desde a meninice nos filmes de François Truffaut. Madeleine está no corpo de Chantal Goya, uma atriz e cantora francesa então em ascensão popular. Nas primeiras imagens que a câmara surpreende os encontros dos dois ele faz tímidas investidas para ela em suas falas a que ela responde de maneira desabusada e com risos; Godard varia sua linguagem, ora mantendo planos fixos sobre uma das personagens que fala, deixando a outra personagem fora do quadro da qual só ouvimos a voz enquanto rola o diálogo; em outras vezes a câmara de Godard se desloca lateralmente no cenário, num bar duma mesa para outra, na rua para captar o cotidiano dos passantes. Mais  adiante, quando o relacionamento entre Paul e Madeleine traz as asperezas do decurso do tempo, ele está mais arredio, ela sem os risos e mais dura. Em todos os modos, Masculino feminino não tem a álacre montagem de Acossado (1960) e está ainda bastante longe da montagem que se desgoverna em Imagem e palavra (2018). Masculino feminino é mais acessível que o vulcão giratório de A chinesa (1967), ainda que ambos tragam as inquietações políticas e geopolíticas da época (como a guerra do Vietnã: lembrando, Chantal Goya é natural de Saigon, apesar de ser francesa); tem os confrontos entre um rapaz e uma moça um pouco como se o roteiro fosse escrito por Éric Rohmer mas filmado com a liberdade de disposição de cenas de Godard, James Joyce reescrevendo Homero.

Os pequenos e irônicos maneirismos de Godard em Masculino feminino são elaboradíssimos e agudos; em momento algum se circunscrevem ao vazio formalista, como se poderia pensar. Igual e diferente para com os outros filmes da época feitos por Godard (pense-se em Alphaville, 1965), Masculino feminino é a mostra da vitalidade estética do cineasta no coração da década de 60.

Como é hábito nas narrativas libertárias do realizador, Godard amiúde sai de seu homem e de sua mulher, Paul e Madeleine, para conversas paralelas. Numa cena a câmara afasta-se momentaneamente de suas personagens centrais e se detém numa outra mesa: o observador logo identifica Brigitte Bardot (que foi a estrela de Godard em O desprezo, 1963) ouvindo instruções de cena de um homem; Brigitte, ou a personagem que ela representa, parece que está ensaiando algo para uma cena que terá de fazer. É uma brincadeira metalinguística muito godardiana. Há uma sequência dentro dum cinema. No banheiro do cinema Paul surpreende dois homens prestes a fazer sexo. Numa outra cena, a bordo dum transporte público, uma mulher branca provoca dois homens negros com xingamentos racistas e eles lhe respondem com ofensas machistas; é um diálogo de troca de preconceitos; a câmara começa sobre Paul que os ouve (as primeiras frases da mulher racista aparecem com a criatura que fala fora do quadro preenchido somente pelo semblante de Paul), depois se desloca para as personagens da ação cênica. O outro recurso bastante habitual no Godard da época é a utilização de letreiros grandiloquentes que surgem na tela como disparos: tiros. Num destes letreiros, uma espécie de dístico político daqueles anos, a geração de Marx e da Coca-Cola, paradoxo que se entranha nos indivíduos contemporâneos de Paul e Madeleine.

No fim do filme  Paul já não existe e Madeleine está grávida: confessa-o num primeiro plano para a câmara, uma câmara que a entrevista. Vai ter de recomeçar a vida. Depois do Vietnã e de referências à situação política do Terceiro Mundo (num diálogo alguém fala da prisão de oito artistas pela ditadura militar brasileira e estende um abaixo-assinado para Paul endossar), de citações a André Malraux, James Bond e Bob Dylan, Masculino feminino se curva a um impasse: uma nova geração que está na barriga de Madeleine.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

Linha
tamanho da fonte | Diminuir Aumentar
Linha

Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

Linha

relacionados

Todas as máterias

Efetue seu login

O DVDMagazine mantém você conectado aos seus amigos e atualizado sobre tudo o que acontece com eles. Compartilhe, comente e convide seus amigos!

E-mail
Senha
Esqueceu sua senha?

Não é cadastrado?

Bem vindo ao DVDMagazine. Ao se cadastrar você pode compartilhar suas preferências, comentar ou convidar seus amigos para te "assistir". Cadastre-se já!

Nome Completo
Sexo
Data de Nascimento
E-mail
Senha
Confirme sua Senha
Aceito os Termos de Cadastro