Encontro e Lembrança em Hiroshima

O homem e a mulher de Hiroshima, Meu Amor cruzam o espaço do filme sem nomes. São quase símbolos metafísicos. Mas Resnais põe seu pé na realidade: a guerra, a bomba atômica

23/03/2017 23:10 Por Eron Duarte Fagundes
Encontro e Lembrança em Hiroshima

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Revisto agora em seu relançamento quase seis décadas após torpedear a comunidade cinematográfica internacional, cabe ao espectador de hoje (o que nunca o viu antes, o que o está revendo) fazer uma pergunta essencial: a que se deve o encanto permanente de Hiroshima, meu amor (Hiroshima, mon amour; 1959), o primeiro filme longo do francês Alain Resnais? Não se sabe: provavelmente nunca se saberá. A romancista francesa Marguerite Duras é autora do texto cujas frases se tornaram clássicas; Duras, como se conhece por sua obra literária, tem uma espécie de som incrustado na palavra escrita: uma certa musicalidade. Seu texto para o filme de Resnais não é somente um texto-roteiro nem apontamentos de diálogos: é como uma nuvem que recobre as imagens inventadas pelo realizador. Resnais usa mesmo o texto de Duras como um dos elementos da linguagem cinematográfica em que o filme se vai convertendo pouco a pouco, as orações literárias são no filme tão importantes quanto os fugidios movimentos de câmara e esta montagem por fragmentos que acabam encorpando-se tão perfeitamente, contra todos os prognósticos. Resnais, afirmamos hoje e sempre, acertou no ponto: genialidade?

O sociólogo Edgar Morin, que é tão francês quanto Resnais (o que implica uma maneira à parte de ver as coisas), acredita que o acaso é o principal motor do cinema. Por que a experimentação de Resnais deu certo, atravessando os anos, e outras tantas no mesmo caminho afundaram? Morin desloca a importância do homem de gênio em cinema para os aspectos fortuitos, os achados inesperados. “Il y a, dans le monde du cinéma, des centaines de projets avortés. La proportion d’avortements est beaucoup plus grande dans le cinéma que dans la vie réelle.” (“Há, no mundo do cinema, centenas de projetos abortados. A proporção de abortos é muito maior no cinema que na vida real.”). A questão para Morin é simples: “Lorsqu’on veut analyser les conditions de création et de production d’un film, on découvre des élements de nature absolument contingente.” (“Quando se quer analisar as condições de criação e de produção dum filme, se descobrem elementos de natureza absolutamente contingente.”). Concluindo o raciocínio, diz Morin: “et il semble que son visage définitif soit le fruit du hasard.” (“e parece que a face definitiva dum filme é fruto do acaso.”) Todas estas observações do grande pensador francês estão no ensaio que Morin dedicou ao filme de Renais: “Aspects sociologiques de la genèse du film.”

Contingente: pode ser, pode não ser. Assim como a própria tese de Morin. Resnais poderia ter errado (acertou pela junção do acaso), mas alguém mais fora Resnais, com suas ideias e seus sentimentos, poderia ter feito tal filme? Contingente.

Ver, ouvir, ler: os três verbos que o crítico brasileiro Paulo Emílio Sales Gomes usou para introduzir o sentimento de obsessão que é dar com um filme como Hiroshima, meu amor. Ver a permanência desta movimentação subterrânea da imagem do filme nos dias de hoje: não envelheceu, segue fascinando pela limpidez e grandeza com que Resnais encena o encontro de duas neuroses, a da mulher e a do homem. Ouvir a poesia singela e aguda de Duras na boca de dois atores, vozes que parecem correr pelos labirintos de imagens, Emmanuelle Riva com seu francês de articulação clássica, o japonês Eiji Okada falando um francês rispidamente orientalizado. E, finalmente, ler Hiroshima, meu amor: acompanhar as anotações de roteiro, repercorrer o texto do filme de Resnais com as palavras de Duras agora vistas na página escrita.

“Je rencontre. Je me souviens de toi.” Quer dizer: “Eu te encontro. Eu me lembro de ti.” A frase aparece duas vezes na narrativa, na boca de Emmanuelle Riva. A primeira vez no longo recitativo inicial (cerca de quinze minutos de fala-over) em que a mulher evoca dois encontros, o atual com o breve amante japonês em Hiroshima, o antigo com um amante alemão assassinado em Nevers, na França. A segunda vez é mais adiante, quase inserida nos diálogos que se misturam com os intervalados recitativos de todo o filme. Esgueirando-se, ela exclama uma imagem: “Le long des murs, je pense à toi.” Isto é: “Ao longo das paredes, penso em ti.” “Tu me tues. Tu me fais du bien.” Como pode? “Tu me matas. Tu me fazes bem.”

O homem e a mulher de Hiroshima, meu amor cruzam o espaço do filme sem nomes. São quase símbolos metafísicos. Mas Resnais põe seu pé na realidade: a guerra, a bomba atômica. O cineasta acaba por criar uma espécie de metafísica da contemporaneidade. Como outro francês, o filósofo Jean-Paul Sartre, que, ainda que centrado em densas e obscuras abstrações, centrou seu ego em articulações de sua época: os estudantes, os operários, o colonialismo. Hiroshima, meu amor é uma tergiversação formal o tempo todo. Um caso de amor e um caso de estética poética que é no fim, meio às pressas, politizado de maneira direta. Ela diz para ele, no movimento final: “Hiroshima, c’est ton nom.” (“Hiroshima, eis teu nome.”) E ele retruca: “Ton nom à toi est Nevers” (“Teu nome, o teu, é Nevers.”).

De qualquer modo, Hiroshima, meu amor revolucionou a forma de fazer cinema. Resnais só atingiria tal grau revolucionário em outros dois filmes: O ano passado em Marienbad (1961) e Meu tio da América (1980). Mas, meditemos com Morin, revoluções não ganham jogos sozinhas. A que se deve o encanto permanente? “Eu te encontro. Eu me lembro de ti.” O casamento entre um encontro e uma lembrança. O encontro: Alain Resnais e Marguerite Duras. Duras lembra seu universo de sempre, um amante oriental, Resnais mergulha nesta lembrança. E, ao filmá-la, age um pouco como o biólogo de Meu tio da América: um estudioso, mas também um poeta.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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