O Centro do Universo de Godard

O centro do cinema teorico-estetico do realizador franco-suico Jean-Luc Godard esta em Duas ou Tres Coisas que Eu Sei Dela

13/07/2020 14:19 Por Eron Duarte Fagundes
O Centro do Universo de Godard

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O centro do cinema teórico-estético do realizador franco-suíço Jean-Luc Godard está em Duas ou três coisas que eu sei dela (2 ou 3 choses que je sais d’elle; 1967). De todas as revoluções que Godard armou com seus filmes (e foram muitas e multiformes), esta de Duas ou três coisas foi a mais ampla e devastadora, embora sua tagarelice visual mais radical e metralhada seja A chinesa (1967). A propósito, 1967 foi um ano fecundo do cineasta; e uma fecundidade de obras-primas: além dos dois trabalhos acima citados, Made in U.S.A. e Week-end à francesa pertencem a esta fatal temporada. Não me lembra que algum outro diretor de cinema tenha cometido este prodígio, fazer filmes tão grandes em tão pouco tempo.

Por que Duas ou três coisas é o holofote de toda a sua obra? Porque é aqui que ele expõe com tremenda lucidez as vísceras de seu processo de filmar e dá sua alma a bater pela radicalidade das fusões de idéias contidas ao longo do filme. É uma espécie de sociologia da estética cinematográfica, sem ser sociológico, sem se resumir ao estético: o diretor de cinema Godard e o ensaísta Godard se dão as mãos para produzir uma linguagem inteiramente nova, uma linguagem que hoje em dia, e em muitos aspectos, parece mais avançada que aquela de seu contemporâneo também francês Alain Resnais. Em seu esqueleto de intenções, Duas ou três coisas se apresenta inicialmente como um hino cinematográfico de amor a Paris, o berço que acolhe o cinema de Godard: as visões da cidade formam uma espécie de documentário dentro do mosaico que é o filme; são duas ou três coisas sobre Paris, um dos instantes mágicos da civilização ocidental, que o espectador vai conhecendo ao longo da narrativa. Como fez Federico Fellini com sua Roma em Roma de Fellini (1972) ou ao modo de Woody Allen em sua afetiva relação com Nova Iorque em Manhattan (1979), Godard aproxima-se carinhosamente de Paris; mas este carinhoso tem muito de cerebral, de uma certa rigidez conceitual que pode incomodar o observador mais conformista.

Depois, Godard está falando duas ou três coisas duma mulher, a mulher engolida pelo fascínio da grande cidade. Apresentando rapidamente sua urbe no início do filme, Godard em seguida põe desdramaticamente em cena a atriz Marina Vlady, convertendo-a logo nos planos posteriores na personagem Juliette Janson; Marina, num plano fixo, diz para a câmara que os atores devem obedecer ao Papai Brecht, devem recitar; a referência ao dramaturgo Bertold Brecht é vital, pois a interrupção da narrativa com recursos do distanciamento emocional determinado pelas falas dos atores  diretamente para a câmara como no teatro de Brecht para o público comentando reflexivamente a ação, é algo que o jovem Godard aprendeu com o teatrólogo alemão, adaptando-o às idiossincrasias estéticas que Gordard hauriu em suas experiências dentro da “nouvelle vague” (nos ensaios dos Cahiers du Cinéma e no interior de suas filmagens).

 Depois de dizer duas ou três coisas em torno duma cidade e duma mulher, Godard vai aplicar teorias políticas e econômicas circulantes nos anos 60 para revelar duas ou três coisas sobre uma forma sócio-político-econômica: somos introduzidos em duas ou três coisas do capitalismo, que no plano de conjunto que encerra o filme é desmascarado com a apresentação irônica de diversos objetos do consumismo da época, alguns permanecem até hoje. Isto me lembra a sequência final de Zabriskie Point (1969), do italiano Michelangelo Antonioni, de quando a personagem da garota “explode com o olhar” uma espécie de ninho do consumo onde diversas coisas se concentravam: era  maravilhosa a sequência construída por Antonioni onde vemos no interior do fogo-incêndio estas coisas serem destruídas; mais seco, Godard não deixa de entremostrar seu gênio de analista do capitalismo, como Antonioni.

Um dos grandes achados de Duas ou três coisas que eu sei dela é a utilização da sussurrada voz-over (é um sussurro sarcástico) que vai costurando as imagens e entrevistando e apresentando as criaturas em cena, criando uma difusa relação entre o diegético e o extradiegético da encenação; esta voz é a ponte da metalinguagem, articulada de maneira estranhíssima na cena em que Godard, na pele desta voz, se questiona se deve filmar folhagens ou pessoas.

Legítimo filme-ensaio (aplicação de teorias científicas a um universo de ficção), creio que Duas ou três coisas que eu sei dela só topa rivais em algumas poucas obras cinematográficas. Entre elas cabe evocar Meu tio da América (1980), onde o francês Alain Resnais partiu para a biologia, e O poder dos sentimentos (1983), onde vemos o alemão Alexander Kluge valer-se duma epistemologia feita de diversos galhos da ciência. Como estes  momentos inspirados do cinema, Duas ou três que eu sei dela penetra nos liames da linguagem documentária para revolucionar o método ficcional no cinema. E revelar que não sabemos muita coisa: senão duas ou três coisas.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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