A Construcao da Ironia do Verbo em Cardoso Pires
O Delfim, apesar de toda a precisa construcao, tem la seus lampejos que alteiam a voz romanesca
A construção irônica da frase lusitana em José Cardoso Pires está perfeita no romance O delfim (1983), que se articula misturando a improvisação graciosa e o rigor geométrico da sintaxe para edificar uma narrativa que é ao mesmo tempo poesia e matemática.
“Cá estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na primeira visita à aldeia e onde, com divertimento e curiosidade, fui anotando as minhas conversas com Tomás Manoel da Palma Bravo, o Engenheiro.”
O delfim é um desfiar de conversações que o narrador (primeira pessoa) tem com o engenheiro; não são diálogos pontuados por travessões e novas linhas , mas ditos de interlocutores que se misturam na trama narrativa. Apontamentos de um mundo primitivo e feudal que se transforma ante a industrialização. Como tantos romances desta época improvável que funde o progresso tecnológico veloz e seres arcaicos que se confundem neste torvelinho de progresso, O delfim vaga neste universo tenso e barroco de mentes à beira do caos. Mas, diversamente de outro luso, o ficcionista António Lobo Antunes, Cardoso Pires observa tudo com despojamento e senso de medidas, algo que ele aprendeu lendo os clássicos brasileiros nordestinos de Graciliano Ramos e José Lins do Rego; porém, diferença benfazeja, Cardoso Pires estabelece certos subterrâneos metafísicos que o afastam daquele realismo humano e linguístico em que, de maneira muitas vezes ingênua, os imitadores de Graciliano incorrem.
O delfim, apesar de toda a precisa construção, tem lá seus lampejos que alteiam a voz romanesca.
“Mas quer ela queira, quer não, a natureza tem os seus impulsos. O Engenheiro chega-se à mulher. Está só e derrotado, precisa de um tronco a que se agarrar. A mão ensonada erra ao acaso, ‘procura as mamas’— relato do Velho — e perde-se num emaranhado macio: pêlos. A mão desvia-se, sobre o ombro, acelera, corre o braço, e o braço inesperadamente acaba: não está completo, é um toco. Então a mão salta sobre o candeeiro e, num relâmpago violento, Tomás Manuel, batido pela luz, escancara os olhos. Em vez de Maria das Mercês, tinha na cama o cadáver do criado.”
Assim, O delfim faz seu levantamento dos cadáveres portugueses cometidos pela aristocracia rural.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br
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