O "Inculto" Entre os "Cultos"

Um belo livro, que narra as trocas entre a cultura de rua de Ivan Cardoso e os gabinetes livrescos de seus amigos

06/11/2021 03:07 Por Eron Duarte Fagundes
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No cinema como na vida o brasileiro Ivan Cardoso nunca coordenou (pôs em ordem) os elementos culturais ou estéticos de que dispunha.. Foi o que vulgarmente se chama um porra-louca: atirar para todos os lados para ver no que dá, contar com um talento que se pretendia genial e à frente de seu tempo. “Nunca me preparei academicamente para nada”, confessa Ivã. Um instintivo. Como José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Ambos, Ivan e Zé, fazem um cinema mais próximo das raízes populares e ambos circulam facilmente entre alguns intelectuais e no mundo intelectual brasileiro mais refinado. Fazem conviver nossos opostos nacionais. Zé, recentemente, contracenou com a seriedade rigorosa e, bem, humorística do crítico Jean-Claude Bernardet num filme e no passado foi exaltado por cineastas de pensamento como Luiz Sérgio Person e Carlos Reichenbach. Ivan foi amigo de Haroldo de Campos; Ivan considera Haroldo o maior poeta brasileiro, uma opinião de grande precisão técnica, especialmente vinda de alguém que revela não ter formação acadêmica nenhuma. Ivan filmou autores raros, como o gaúcho Dyonélio Machado e o amazonense Gastão Cruls, sobre os quais o realizador carioca tem opiniões bastante fortes e autênticas.

Este preâmbulo é para situar meu fascínio diante do livro Ivan Cardoso, o mestre do terrir (2008), escrito pelo próprio Ivan (até prova em contrário). Ivan escreve como quem filma: sem peias na linguagem. No capítulo 1, “Ivan Cardoso apresenta”, ele já diz como veio, a que veio: “O cinema sempre teve um efeito hipnótico sobre mim”. Confessa que desde pequeno vai  muito ao cinema, era um programa que fazia habitualmente com seu pai. Formação, pois, cinematográfica. Não teve uma direção acadêmica, como diz. Mas se sedimentou empiricamente: vendo filmes e querendo fazê-los.

O terror parodiado é a alma do cinema de Ivan Cardoso. O segredo da múmia (1982) é o ponto em que a espontaneidade anti-acadêmica de Ivan melhor se coordena espontaneamente; subdesenvolve um horror que atinge um âmago de nossos próprios sistemas de produção. Não sei se Ivan foi o cineasta que imagina ser. Mas fez um grande barulho. Quase tão grande quanto o de Glauber Rocha, que é um realizador maior. Cineasta da incompreensão e dos objetos tortos da cultura brasileira, Ivan ainda está aí, nos provocando e nos irritando, que é mesmo do que precisamos neste mundo de uniformes bonitos ou visíveis. Ivan Cardoso, o mestre do terrir, um livro cinematográfico, um livro com a boca de quem filma, parece coroar a trajetória de associação entre nossas pequenas culturas interioranas e suburbanas e a massa de conhecimentos sofisticados que há por aí; as afetações estéticas de Décio Pignatari não por acaso prefaciam o texto rio-fácil de Ivan: os fossos de linguagem se juntam, “o necrocinéfilo das catacumbas” de Décio é o mesmo indivíduo que diz que “ainda vou fazer um filme de Hércules —só para filmar aquelas deusas seminuas”. Nestas fusões da cultura brasileira, nestes antagonismos identificados pelo pernambucano Gilberto Freyre, opondo o caso do carioca Ivan (Zé do Caixão e Haroldo de Campos, Décio Pignatari e os filmes de aventura dum cinema da rua do Catete) a meu próprio caso, um gaúcho que, em meados  dos anos 70, lia o texto sofisticado do romancista José Geraldo Vieira ao mesmo tempo em que ouvia os cantores popularescos regionalistas Teixeirinha e Gildo de Freitas em alguns descampados de Caxias do Sul habitados pela rude gente donde promano. Somos na verdade uma miscelânea, eu, Ivan e vários brasileiros. É isto que está neste belo livro, que narra as trocas entre a cultura de rua de Ivan e os gabinetes livrescos de seus amigos.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

 

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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