A Palavra Geme em Lúcio Cardoso

O escritor Lúcio Cardoso não é alguém que tenha uma visibilidade escancarada dentro do universo brasileiro

08/08/2018 00:12 Por Eron Duarte Fagundes
A Palavra Geme em Lúcio Cardoso

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O escritor Lúcio Cardoso não é alguém que tenha uma visibilidade escancarada dentro do universo brasileiro. Nossas aparentes faceirices e superficialidades impedem esta aproximação visível. Se sua prosa é pouco frequentada, sua poesia, que ele praticava o mais das vezes de maneira muito secreta ao longo de toda a vida, pertence aos subterrâneos mais fundos da literatura. Não é fácil de topar estes túneis e segui-los; mas vale a pena. A publicação de Lúcio Cardoso Poesia completa (2011), organizada por Ésio Macedo Ribeiro e levada a lume pela Editora da Universidade de São Paulo, é um destes achados editoriais que apaixonam os que se interessam por literatura rara, pelo êxtase literário propriamente.

Antes de mais nada, convém dizer que a poesia de Lúcio não se difere muito de sua prosa, pois esta prosa, sabemos, tem a palavra em delírio, as imagens têm a frequência poética como se a forma exterior (prosa ou poesia) fosse uma escolha momentânea, capaz de dizer que o que importa é a essência, é o espírito. Um pouco exercícios elevados para que Lúcio também escrevesse seus romances no estado em que estão, um pouco voos em versos tão grandes quanto os melhores poetas do século, os poemas do autor mineiro são, como tudo nele, perigosos e magnéticos círculos aviatórios sobre o abismo: pronto para cair, o poeta geme em palavras, quer dizer, a palavra em Lúcio é o gemido do poeta.

Herdeiro de um grande romancista trágico do século XIX, como o russo Fiódor  M. Dostoievski, contemporâneo do existencialismo, Lúcio cantou em seus versos as agruras interiores mais perversas que se pode conhecer. Para sobreviver ao desespero de existir, Lúcio escreveu; a escrita é seu exorcismo, salva-o até onde der. Mandar os demônios para a página escrita: eis o possível; aliviar o interior de si. Certas coisas parecem incontroláveis: temer o mundo, a nostalgia de uma angústia que não se define senão nos símbolos verbais que acabam bastando-se.

Um bom exemplo da excelência de sua arte poética é o poema “Cantiga” (1933), uma nervura verbal onde tudo se encontra, os gemidos, o vento que vergasta, a criança morta, as flores despetaladas, o louco que canta no escuro, o passado hostil, o azul e luminoso que se perdeu na desesperança de um amor. Tudo falhou: sobrou a literatura.

“Venho de Março distante e frio.
Sou as tardes que passavam como os rios
E que seguiram rolando pela noite de gemidos
Sou o vento que vergasta as rudes ondas
E o vazio das horas que demoram.

 

Venho de Março. O grande frio
Amareleceu as flores e as folhas dos caminhos.
Nos campos, os homens descansavam olhando o céu cinzento
E os trigais dormentes balançavam
Carregavam uma criança que acabara de morrer
E um sino soava lentamente no fundo do horizonte.

 

Venho de Março. Venho das tardes frias
Quando as flores se despetalavam nos jardins.
Havia ao escurecer um louco que cantava.
Venho desse passado hostil que me acompanha,
Venho desse Março que foi azul e liminoso,
Venho do meu amor perdido para sempre.”

Para sempre Março distante e frio. Hosana a este Lúcio interminável e literário como já não há no Brasil.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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