A Palavra Que Sangra
Em David Herbert Lawrence a palavra parece estar sempre sangrando, mesmo quando ele fala de coisas aparentemente triviais
O esforço de amar Marcel Proust e James Joyce custou-me largos anos de aprendizado literário, Franz Kafka sempre me impressionou por seu clima narrativo: o pesadelo despojado. Mas há um autor —autor inglês!— que tem cruzado por mim desde a juventude e a cujo verbo não resisto: é um delírio, uma tensão constante.
Em David Herbert Lawrence a palavra parece estar sempre sangrando, mesmo quando ele fala de coisas aparentemente triviais; como escreveu seu patrício E. M. Forster, as páginas de Lawrence semelham uma sala vazia depois duma festa de crianças, aquela evocativa bagunça da meninada que se foi. Forster chamava Lawrence de profeta, mas é preciso ler e reler o texto de Forster para entender bem o que significa esta categoria em literatura —profeta—, nada a ver com a banalidade das profecias mundanas.
Retomo Lawrence ao devorar um de seus romances esquecidos na poeira de minhas estantes. Trata-se de A jovem perdida (1920), em que a mestria narrativa do criador britânico e seu verbo pulsante se abrem esplendorosamente ao leitor. Fantástico na aprofundada caracterização das personagens, Lawrence, como bom inglês, não esquece de retratar o ser social que habita suas criaturas; a construção da heroína Alvina Hoghton obedece a este equilíbrio entre a pessoa interior e aquela que é moldada pelo exterior, pela sociedade.
Ambientado em 1913, pouco antes do começo da I Guerra Mundial, o romance de Lawrence vai concluir-se com a partida do marido de Alvina, ela que amargara anos de solteirona antes de topar sua vítima conjugal, para a guerra. As forças da natureza chocam-se com o vulcão interior das pessoas, como costuma acontecer nas tramas de Lawrence, geralmente uma insatisfação interna da literatura que sai das personagens para o leitor.
As tiradas de Lawrence são por via de regra inquietantes. E tantos anos depois, quando a certeza se converte em incerteza, podemos ler isto com uma ponta de sorriso nos lábios: “A sabedoria apenas se refere ao passado. O futuro permanece para sempre um campo infinito de erros. Ninguém o pode conhecer de antemão.” Aterrador, pois não?
Outra nota curiosa que se deve referir é o longo trecho em que Lawrence fala de exibição cinematográfica, pois o pai de Alvina decidira construir seu cinema no lugarejo. Estranho que Lawrence, um intelectual (embora não tão pedante quanto Aldous Huxley, grande escritor todavia), dirigisse alguma atenção para algo tão pouco interessante para os intelectuais quanto o espetáculo cinematográfico, então mais para feira de variedades do que para qualquer outra coisa. Entende-se: o Lawrence intelectual gostava destas coisas primitivas, populares mesmo, de onde muitas vezes ele extraía a força de sua linguagem. Seria Lawrence um pós-moderno, contrapondo-se (ao refinamento de Proust, ao caos de Joyce e à secura formal de Kafka) com sua selvageria?
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br