A Cronica e a Nostalgia
Braz Chediak tornou-se um artista da cronica: as coisas de seu dia-a-dia relatadas com sensibilidade
Foto: Marcus
Braz Chediak tornou-se um artista da crônica: as coisas de seu dia-a-dia relatadas com sensibilidade, aqui e ali atravessadas por evocações e alusões culturais. A gatinha e o cronista (2023) exibe a singeleza e a natureza quase direta de sua proposta estética. Falando dum acontecimento (particular ou público) dos tumultos do século XXI, ainda assim Braz produz a crônica da nostalgia, um pouco pela linguagem de que se vale, outro tanto pelas referências diretas que sempre parecem vir de outro lugar, aquele da mente de seu criador, o escritor Braz Chediak.
“..., lembrei-me de um diálogo do filme Alphaville, de Godard:
—Você sabe o que transforma a noite em luz?
—A poesia.”
De todos os tipos narrativos, a crônica, a despeito de sua veiculação em jornais ou publicações diárias, do cotidiano, é o que mais se aproxima da poesia, isto é, do interno da linguagem, de um certo coração, invisível do modo de expressão. Mas, para chegar a esta aproximação, Braz vai ao cinema, vai a Godard. Vai? Não: o autor sempre esteve lá, no mundo do cinema, o que ele faz aqui é recolher-se em algum canto da nova linguagem no seu meio natural. No passado (anos 60, 70 e começo dos 80) nosso autor fez filmes. Obras à margem da grande indústria, como boa parte do cinema brasileiro daquela época, menos barulhentamente midiática que nos dias de hoje. Braz retratou em imagens o universo de violência esquisita do teatro de Plínio Marcos, A navalha na carne (1969) e Dois perdidos numa noite suja (1970) e, depois de alguns filmes eróticos (O roubo das calcinhas, 1975), numa fase difícil entre nós, enveredou, ainda no teatro, pelo escrachado moral de Nelson Rodrigues (Perdoa-me por me traíres, 1980; Bonitinha mas ordinária ou Otto Lara Resende, 1981; Álbum de família, uma história devassa, 1981). Suas crônicas, de leveza contemporânea, divergem de seu cinema áspero e provocativo; mas só aparentemente, porque o cronista nasce duma necessidade de expressão estética de quem já foi cineasta.
Voltando à crônica da poesia como fonte de tudo, da luz essencialmente, o leitor depara: “A poesia está em romances como Grande sertão: veredas, em contos como os de Lygia Fagundes Telles, em crônicas como as de Rubem Braga, em músicas como as do Garoto, do Chico, do Vinicius e, por saber disto, eu, cronista interiorano, me esforço e, às vezes, encontro esta poesia numa criança tomando banho de bacia e numa mulher estendendo roupas num varal.” Em seus filmes de Plínio Marcos, Braz era, como Plínio dizia de si mesmo, “o cronista de um tempo muito mau.” Nas crônicas de A gatinha e o cronista ele está à luz (aqui, este anotador de livros vai ou volta ao cinema, pois os filmes são também minha praia sempre) dos filmes do cotidiano do japonês Yasujiro Ozu: as roupas no varal. Escreve Braz: “Em minha vida sem raízes, conheci ruas tranquilas e ruas tumultuadas, ruas românticas e ruas secas, ruas planejadas que ostentam palacetes e ruas tortuosas, de barracos humildes.” Ausentando-se de raízes (que muitas vezes só aprisionam), Braz Chediak, em seu antigo cinema e em sua atual literatura, se conecta com sua essência, que é o que importa.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br
relacionados
últimas matérias