Em seus melhores dias, o italiano Bernardo Bertolucci misturou em suas tramas nebulosas o sexo e a política, Freud e Marx para, pelas características de suas encenações em que as câmaras se movimentam tensamente na direção dos cenários, chegar ao coração duma sociedade que existiu nos anos 60 e 70 e hoje parece estranha para o espectador deste século XXI multifacetado e difuso. Rever (ou ver, que a revisão é na essência uma visão como embrionária) uma obra como O conformista (Il conformista; 1970) é mergulhar neste universo tão diferente que Bertolucci recria com seu engenho de filmar único; um filme de Bertolucci sempre parecerá datado na textura estética que apresenta, mas aqui vai “datado” não como uma falha mas como uma característica, onde se dá com o convite para entrar na mais bela das profundidades fílmicas.

O conformista parte de um livro do estimado escritor italiano Alberto Moravia. O que vemos em cena, desde as primeiras imagens em que Marcello Clerici pronuncia algumas meias palavras num diálogo de sentido obscuro ao telefone, são as sinuosas evoluções da personagem, cuja essência o observador capta aos poucos. Marcello é um burguês: um pequeno-burguês se diria antanho. Quer uma boa vida normal. Em 1938, época da história, uma boa vida normal era aliar-se ao fascismo de Benito Mussolini. É o que Marcello faz. Trabalha para o regime. O ator francês Jean-Louis Trintignant caracteriza com rigor de gestos e expressões as ambiguidades e os meios-tons desta criatura. Em cena, as mulheres. A esposa meio desgraciosa de Marcello, Giulia, interpretada por um ícone feminino da época, a italiana Stefania Sandrelli. Dominique Sanda, a francesa lançada dois anos antes pelo diretor Robert Bresson, é Anna, usando e abusando de seu tipo loiro, esquisito, amadorístico, misterioso. Anna torna-se amante de Marcello: mas antes ela é a esposa do professor Quadri, vivido com despojamento por Enzo Tarascio. Quadri é um antigo mestre de Marcello: ambos se dão. Mas o fascismo de Marcello se opõe ao antifascismo de Quadri. Descobre-se que Marcello está em Paris a serviço do regime para espionar as atividades de Quadri, considerado um subversivo. E Marcello entrega a Quadri. O cinismo das sequências da conduta, lenta e precisa, de Marcello vai ter nas imagens de extrema violência em que Quadri é atacado e assassinado pelos agentes policiais do sistema. No desdobramento sexual, Anna deixa-se atrair pelo corpo de Giulia; o embate erótico entre a Sandrelli e a Sanda chegam à libido do observador, à maneira de Bertolucci, e o sexo é a irreverência que torna vital e enérgica a questão política.

A estética profunda e belamente datada de Bertolucci não impede que as questões da trama de O conformista guardem agudas relações com a realidade de nossos dias, décadas iniciais do século XXI, onde o fascismo é como a ação de Marcello, lento, disfarçado e visando a um fim violento.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)