O documentário Notícias de uma guerra particular (1999) foi o início da fama cinematográfica de João Moreira Salles. Feita para a televisão (já no começo do filme, ao referir-se ao trabalho, o locutor usa a palavra “programa”, o que logo indica seu canal de exibição e torna agora paradoxal o vocábulo quando pensamos no universo cinematográfico de João), uma narrativa de menos de uma hora de duração, a realização explode nos labirintos de seu próprio assunto, os conflitos do tráfico de entorpecentes no Rio onde as visões da polícia, dos traficantes e, em escassa voz, da população dos favelados expõem suas fraturas, encontros, desencontros ou encontros desencontrados.

Como sempre faz, Moreira Salles, pertencente à elite econômica e intelectual do país, põe-se dentro dos embates de classes do Brasil. E isto não se dá sem uma certa angústia que invade as imagens e chega à alma do observador. O garoto que, questionado pelo entrevistador, diz que ao queimar com pneus e gasolina um outro ser humano, se sentiu normal, assim como está naquele momento da entrevista, e o jovem policial que, referindo a morte que possa ter causado a algum inimigo (traficante?), conclui que se vê com o dever cumprido, são os polos desta guerra particular a que uma outra entrevista alude, diz o soldado desta outra entrevista que esta guerra nunca terá fim, não vê luz no fim do túnel, não vê solução.

A sutileza cinematográfica de Moreira Salles é a maturidade de um cinema brasileiro que um dia, pela boca de Reginaldo Faria, interpretando um bandido famoso, em Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977), de Héctor Babenco, resmungou para a câmara: bandido é bandido, polícia é polícia. No cinema de Moreira Salles as coisas são mais complexas e se misturam.

No trecho final do documentário se alternam filmagens de enterros de garotos da favela e de policiais, partes que se enfrentaram nesta guerra muito particular de que o restante da sociedade parece afastado. Depois batem na tela os nomes e datas de nascimento e de falecimento de vários indivíduos que são ou os traficantes ou os policiais; vão-se acumulando os letreiros até que, pela multidão de escritos, a coisa se torne borrada, ilegível na tela: é como esta guerra, que se tornou incompreensível à medida que avançou, perdemos a visão original dela. E não nos resta nada senão angustiarmo-nos.

P.S.: Um dos entrevistados do documentário de João Moreira Salles é o escritor Paulo Lins, autor do romance Cidade de Deus (1997), que depois viraria filme dirigido por Fernando Meirelles e pela própria Katia Lund em 2002; Lins é um artista egresso da favela e seu livro é um retrato da vida nestes cenários marginais da sociedade brasileira. Também curioso é o registro documental da palavra “tóxico” pelo povo dos morros cariocas: dizem tóssico e não tócsico”.

(Este texto foi escrito numa revisão do filme em 2018. À luz dos últimos acontecimentos no Rio de Janeiro, é de se perguntar se a guerra particular das periferias não se tornou agora uma guerra expandida porque, graças à imperícia governamental ou sua demência mesmo, afetou toda a população carioca, a classe média, a burguesia mesmo, paralisou a cidade em dado momento).

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)