O Cineasta Burguês e o Proletário Intelectual
Santiago é, em sua essência, o mais metafísico dos filmes brasileiros, uma aguda meditação sobre o nada que é viver
Numa determinada cena de Santiago (2007) o realizador do filme, o documentarista João Moreira Salles, põe em cena sua voz-off para questionar o protagonista do filme, o mordomo da família Salles, o argentino de origem italiana Santiago Badariotti Merlo, se ele, um mordomo (esta palavra não é dita ali, mas é como se fosse), não se intriga com a sensibilidade e a inteligência que o destino pôs nele; há uma insistência: por que logo comigo, por logo eu sei navegar com tanta desenvoltura por estas águas culturais? E Santiago, o mordomo, embarca nesta visão que um artista burguês pode ter dum proletário: por quê? por quê? que vai um pobre mordomo fazer com tanto material?
Santiago teve suas filmagens documentais feitas em 1992: como exercício de filmar, o cineasta tentou montar um filme a partir duma intensa e extensa entrevista com o ex-mordomo de sua família, um ítalo-argentino de nome Santiago. Não topou o tom certo e as imagens foram arquivadas. Como outro documentarista brasileiro, Eduardo Coutinho, que voltou a seu arquivo de imagens para ver o que ocorreu na sociedade brasileira ao longo de vinte anos em Cabra marcado para morrer (1964-1984), transformando o antigo documentário sociológico numa reflexão sobre o processo documental, Moreira Salles também retornou a seu quarto de imagens e remontou o que havia filmado treze anos antes, acrescentando algumas imagens novas e textos atuais, para falar de suas próprias mutações como indivíduo-cineasta e ver o que se materializava como inautêntico no Santiago de 1992 impedindo que o material chegasse a um filme. Em certos momentos do atual Santiago a voz-over, ao observar diversos planos outrora filmados, se pergunta sobre sua naturalidade, sobre a natureza dos cenários, se tal objeto não foi acrescentado artificialmente, se a ilusão de vento numa imagem de água de piscina não foi fabricada por uma mão providencial, se o cair das folhas sobre a água da piscina é mesmo tão natural quanto este aparente acaso de filmar ou a justaposição de planos diversos que rumam para soluções idênticas talvez indiquem a falsidade de um documentário puro (que não existe, mas que o jovem João de 1992 instava em criar uma aparência artificiosa, como é artificiosa, reconhece hoje, sua ligação com o mordomo-personagem no documentário). Santiago, este de hoje, adota uma estupenda consciência crítica: sobre o documentário, sobre a personagem, sobre o narrador. Nos planos antigos a voz-off de João conversa com Santiago, mas revela seguidamente uma relação autoritária. Na montagem atual de Santiago a voz-over (a que dita a consciência narrativa) é de Fernando Moreira Salles, irmão do realizador, mas o texto é de João e é dito como se a voz de Fernando pertencesse a João. Esta sutil alteração de vozes (João para Fernando) é fundamental: maduro, João desistiu daquele estrelismo de diretor que o impediu, em 1992, de atingir o interior de sua criatura, o mordomo Santiago. João esqueceu-se então de que Santiago era ele mesmo, João, ou quem sabe a face obscura de João, a face maldita, anti-burguesa; João e sua câmara percorrem, em 2005, os manuscritos delirantes de Santiago como co-autor daqueles manuscritos e Santiago vai sendo tecido pela realização atual com o co-autor do filme (categoria que o mordomo não poderia pretender na forma como as coisas foram elaboradas em 1992). Os planos da dança das mãos de Santiago —longos, plásticos, musicais— foram sugeridos em 1992 pelo próprio Santiago e acatados pelo cineasta; aparecem na montagem de hoje como a chave da mea culpa do cineasta burguês para com o proletário intelectual. Aqui, o mordomo não é o culpado: é o diretor de cinema, um ser que no início do filme e em alguns outros momentos parece extraído dos filmes do brasileiro Walter Hugo Khouri e do italiano Michelangelo Antonioni; esta profunda elegância do plano cinematográfico, no filme de Moreira Salles, é tanto sua entrega aos artifícios burgueses quanto a revelação duma sensibilidade estética única e estranha. No fundo, Santiago não é um filme sobre um mordomo excêntrico, nem sobre as relações deste mordomo com a família burguesa em cuja casa trabalhou ao longo de três décadas; Santiago é, em sua essência, o mais metafísico dos filmes brasileiros, uma aguda meditação sobre o nada que é viver.
No final de seu documentário o realizador põe uma cena final de Viagem a Tóquio (1953), do japonês Yasujiro Ozu, filme exibido por aqui com o título de Era uma vez em Tóquio. Para lembrar que o rigor estético de Santiago é influência de Ozu: planos médios e fixos, um filme que desenreda toda a parafernália do cinema para se deter como cinema na estrutura despojada do plano; é a forma do plano que conta a história do filme e não um enredo que nunca chega. O francês Robert Bresson seguia também este caminho. Santiago recitando uma oração em latim e pensando em seus mortos, desta encarnação e de outras mais mirabolantes encarnações. Em Santiago João Moreira Salles não deixa de expor as fraturas de seu documentário de 1992: refaz insistentemente algumas cenas, o tom de Santiago e do diretor são constantemente falhos, a linguagem aparece em toda sua debilidade; mas, milagre da montagem atual, as folhas se ajustam reflexivamente.
João Moreira Salles já filmou um traficante carioca. E um refinado pianista. E a campanha presidencial de Lula. Mas nunca como em Santiago ele esteve tão à vontade em suas desmistificações. Em seu prefácio ao livro O cinema de Eduardo Coutinho (2004), de Consuelo Lins, João anota: “O cinema de Coutinho dedicou-se a reunir um conjunto de histórias fragilíssimas, oferecendo a cada uma delas aquilo que, em outros filmes e outras circunstâncias, elas não teriam: proteção.” Talvez o jovem João se tenha aproximado de seu mordomo sob a inspiração de Coutinho, que ele admira; proteger o efêmero mordomo com a eternidade de sua câmara. Em Santiago, o documentário executado treze anos depois, João desmistifica o espanto de sua juventude: Santiago não era nada frágil, como seria de se esperar de um mordomo. Desta visão distorcida das relações com Santiago nasce um certo constrangimento e distanciamento nas filmagens documentais de 1992; uma das sutilezas e das forças de Santiago, o filme que se desabotoa em 2005, vem desta linha subterrânea, narrar o antigo constrangimento (o jeito de Santiago nas repetidas tomadas de cena onde a cada repetição a fala do mordomo se torna mais arredia), desbaratar sem interferir o distanciamento das imagens.
João refere Ozu, como já aludi. Fala no alemão Werner Herzog, outro que gosta destas personagens esquisitas extraídas da originalidade da Terra. E de Ozu, o seco Ozu, vai namorar o mágico americano Vicente Minnelli, cujo A roda da fortuna (1953, mesmo ano de Viagem a Tóquio) é a fita preferida de Santiago e cuja cena de dança no bosque entre Fred Astaire e Cyd Charisse é incluída em Santiago; João mostra o silêncio constrangedor inicial do par, uma caminhada que se eterniza entre as árvores, de repente sem descontinuidade e com uma naturalidade que não se sabe de onde nasceu se acertam Fred e Cyd nos passos duma dança arrebatadora. É como se João quisesse indicar que seu atual Santiago pudesse sair das relações constrangidas que pingam do arquivo de imagens do antigo abortado documentário e passasse a harmonizar melhor seus passos com sua personagem. Santiago e João saem do escuro de suas relações de classe para dançarem juntos e afinados num inusitado espaço metafísico do cinema brasileiro, em Santiago, o over-documentário que João foi buscar em sua pré-história cinematográfica. Rascunhando e rabiscando, mas de maneira rigorosa e implacável (lembremos Ozu, lembremos Bresson), Santiago é a própria asa da linguagem a que o espectador pode aspirar mas cujo voo é sempre difícil atingir pela ingênua seta do olhar.
P.S.: Um antigo curta-metragem brasileiro, 226 (1985), rodado em Super-8 pelo cineasta e crítico de cinema gaúcho Tuio Becker, é o que mais se assemelha em minha memória estética com Santiago. Naquele filme de Tuio um sujeito visitava uma casa ligada a suas lembranças de família e nesta visita cinematográfica travava o contato-celuloide com os mortos de suas lembranças, mortos que viveram naquela casa. Sabe-se também que a casa evocava lembranças do próprio realizador, Tuio Becker, e das pessoas de sua família. O que associa um filme a outro é um pouco esta tendência de eliminar a cisão documentário-ficção, um pouco esta elegância profunda das imagens que Tuio Becker (há de mais de vinte anos) e João Moreira Salles (atualmente) põem em cena.
(Este texto foi escrito em 2007. Atualmente o realizador lançou outro grande documentário: No intenso agora, 2017).
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br