Com a Palavra, a Imagem

José Carlos Avellar, um dos mais notáveis cérebros cinematográficos brasileiros, faleceu em 18 de março de 2016, aos 79 anos

05/06/2016 02:21 Por Eron Duarte Fagundes
Com a Palavra, a Imagem

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(José Carlos Avellar, um dos mais notáveis cérebros cinematográficos brasileiros, faleceu em 18 de março de 2016, aos 79 anos. Era daqueles sujeitos que se pensava nunca poderia morrer, não se sabe bem por quê. Carioca, era um brasileiro do mundo: percorreu festivais de cinema por todo o planeta com sua inteligência de primeiras tintas. Eu o vi pessoalmente duas vezes: num curso sobre Woody Allen, em 2010, no Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, em Porto Alegre; e no Festival do Rio de 2014 quando, no auditório do Instituto Moreira Salles, ele apresentou o filme Os maias, 2014, na presença do diretor português João Botelho. Escreveu livros maravilhosos, mas O chão da palavra; cinema e literatura no Brasil, que analiso abaixo, é gigantescamente belo).

 

Em 1994, para acompanhar a Feira do Livro de Frankfurt, Alemanha, foi editado em português, inglês e alemão um opúsculo chamado O chão da palavra; cinema e literatura no Brasil. Seu autor, o carioca José Carlos Avellar, demonstrava uma aguda sensibilidade para as duas artes, literatura e cinema, para escrever um ensaio que captava os pontos de intersecção entre os dois meios; na verdade, Avellar vai insinuando uma referência direta, aquela “unidade da arte” a que aludia um antigo crítico italiano, Umberto Barbaro, revelando algo de “íntimo e essencial” que transforma “um quadro, uma sinfonia, uma estátua, uma poesia, um filme, um palácio” numa das muitas exteriorizações desta espécie que é a arte.

O opúsculo teve restrita circulação no Brasil. Agora, em 2007 a editora Rocco lança O chão da palavra; cinema e literatura no Brasil (2007), mas se trata de um novo livro, cujo embrião é aquilo que Avellar escreveu em 1994 mas agora se expande para vários lados, alterando textos, acrescentando principalmente, cortando aqui e ali para montar a visão atual do crítico sobre seu tema apaixonado, as relações entre a literatura e o cinema. Pode-se dizer que o livro de 1994 se concentrava mesmo nas relações entre a literatura e o cinema brasileiros, instando especialmente com as adaptações literárias feitas por nossos cineastas; em 2007 Avellar não deixou de manter esta base (cinema e literatura no Brasil), mas alargou as perspectivas de seu trabalho: as citações de filmes e livros estrangeiros abundam; as alusões a outras artes fora dos âmbitos literários e cinematográficos aparecem amiúde (a mais sinuosa talvez sejam as relações entre os retratos da escritora Gertrude Stein pintados por Picasso e os retratos em palavras de Picasso escritos por Gertrude; analisar estas tensões entre a pintura de Picasso e a literatura de Gertrude ajuda Avellar a compor sua visão de como um filme se adapta ao livro-base ou de como um livro se metamorfoseia em filme desde sua concepção em palavras).

O ensaio atual começa da mesma maneira que o livro de 1994; cita o poeta Manoel de Barros, cuja poesia foi objeto de um filme curto de Joel Pizzini, e cita o cineasta Nelson Pereira dos Santos, cuja influência literária estaria bem antes de suas incursões diretas pela ficção de Graciliano Ramos e Jorge Amado. E depois, o leitor que gira os olhos de um texto (1994) para outro (2007), vai encontrar diferenças profundas em quase todos os trechos-textos; na base, a identidade entre o opúsculo dos anos 90 e esta divagação que Avellar propõe no século XXI (evidentemente, há inclusão de vários livros e filmes, ou filmes extraídos de livros cuja existência no cinema só veio depois de 1994) é esta vontade insistente de ver o que se esconde por trás da atração destas duas artes cuja materialidade tanto diverge.

A impressão que se tem, lendo O chão da palavra (o opúsculo e o livro atual), é de que Avellar, se não fosse essencialmente um homem de cinema, poderia ser um pensador literário: escrever sobre livros. No primeiro Chão da palavra Avellar compõe um dos mais interessantes estudos sobre Angústia (1936), o romance de Graciliano Ramos, jamais escrito por qualquer ensaísta no Brasil. Ninguém captou a estrutura da obra-prima de Graciliano como Avellar: seria preciso uma visão cinematográfica para enxergar? Começa assim: “Graciliano Ramos, por exemplo. Angústia (1936), seria um romance cinematográfico? É um texto ainda não filmado, mas seu estilo de composição tem sido aqui e ali adaptado pelo cinema brasileiro.” Treze anos depois, o “ainda não filmado” permanece; talvez Avellar tenha posto o advérbio “ainda” na esperança de que alguém filmasse o livro (é possível filmar um livro ou só podemos filmar a capa e as páginas, fisicamente, de um livro?) e nesta remontagem de 2007 do chão da palavra a análise de 1994 se corporificasse na existência de um filme angústia. Não aconteceu. Mas o filme está lá no texto de Avellar, que é ali como em todas as suas páginas (de 1994, de 2007) a palavra da imagem ou ao menos a palavra da imagem sonhada. Em 2007 o texto de Avellar se altera sobre a angústia de Graciliano: “Angústia de Graciliano Ramos (escrito em 1936): história inventada pelo cinema ou história para reinventar o cinema? Luís da Silva, que embaralha as letras do nome de Marina para montar palavras ao mesmo tempo em que desembaralha as idéias para contar sua história —para si mesmo? Luís da Silva, que não consegue ser o protagonista de sua própria história: um narrador/narrativa/espectador de cinema? Comunicação revirada?” A nova análise do romance de Graciliano já é o próprio filme brasileiro que talvez nunca possa existir em cima deste romance tão angustiadamente interior; se o livro de Graciliano parece um pouco uma teoria de cinema, ou as aplicações desta teoria a um estrutura literária, pode-se considerar o texto de Avellar sobre o livro um pouco como a palavra desta imagem inexistente, a palavra que substitui (precariamente) esta imagem (o filme do livro) que ainda (ou talvez nunca) chegou.

Em 1994, lá pela conclusão de seu texto em torno de Angústia, Avellar anota: “Imaginemos todos esses trechos em que num romance o narrador se refere a filmes, atores, atrizes e salas de projeção como equivalentes aos trechos em que num filme a câmera se debruça sobre a página de um livro. Ou equivalentes às notas que no pé da página ou final do capítulo indicam as fontes que alimentaram o trabalho.” Em 2007 o autor reescreve, remonta as palavras de 1994: “Vejamos os trechos em que num romance o narrador se refere a filmes, atores, atrizes e salas de projeção como equivalentes aos trechos em que num filme a câmera se debruça sobre a página de um livro. Ou como notas que, ao pé da página ou final do capítulo, indicam as fontes que alimentaram o texto.” Não se engane o leitor: trata-se de dois livros distintos, cuja base de estudos é a mesma e cuja motivação é uma idêntica obsessão, penetrar na alma da literatura e do cinema ao mesmo tempo. “Noutras imagens, filmar com um lápis numa folha de papel amassado, que a palavra é o chão da imagem”, assim conclui Avellar seu opúsculo de 1994, parecendo referir-se um pouco a próprio texto, que é cinema em palavras e que, observemos bem, pode ser cinema quanto qualquer filme, porque cinema é imaginação e no cérebro de Avellar, um homem  de cinema, as palavras são imagens, o que ele faz é a palavra da imagem. Não é gratuita ou somente exagero laudatório a afirmação do cineasta Carlos Diegues sobre Avellar: “Com isso, ele se tornou, no tempo, não só co-responsável pelo destino do nosso cinema, como também co-autor dos filmes que fazemos.” Avellar talvez seja um dos poucos (quem o outro? Jean-Claude Bernardet, certamente) a quem no Brasil cabe esta identificação de um crítico com a linha de frente dos cineastas nacionais.

Depois da experiência de, passados treze anos, refazer um estudo comparativo de cinema e literatura a partir do Brasil, Avellar se dá conta de que a conversa é interminável e um assunto que brota de outro vai adiante expelir outro broto e assim por diante: “é reafirmar que a relação entre a literatura e o cinema se realiza assim:” Depois destes dois pontos, um espaço branco. Lá no fim da página: “Para não encerrar a conversa:”. Após estes dois pontos, uma original referência à confecção do livro, aos que o inspiraram (as obras, os amigos de trocas de idéias cinematográficas) e a seu prolongamento na leitura que se está fazendo e que é um complemento do livro (sem leitura não há livro: o primeiro leitor, é claro, é o próprio autor). O novo chão da palavra não se conclui como o primeiro. É uma porta aberta para o desenvolvimento de seu tema, até o último filme, até o último livro.

 

P.S.: Curiosa esta ilação cinematográfica que Avellar extrai de Angústia. É um romance que sempre me pareceu muito literário, desde minhas primeiras leituras adolescentes. Sua intensidade verbal é grande. Maior que a que há em Vidas secas ou São Bernardo ou Memórias do cárcere. Talvez esta natureza verbal do livro tenha acovardado os cineastas brasileiros. Que preferiram, Avellar pega bem, adaptar excertos de seu método de composição neste ou naquele filme e não sua perigosa totalidade. Mas haveria um roteiro possível para Angústia? Poderíamos começar assim:

Plano médio de um homem magro e de aspecto doentio: ele está parado a um canto duma sala às escuras. Só vemos sua silhueta imóvel; o restante do cenário é feito por sombras, fotografia densa. Pouco a pouco estas sombras começam a adquirir vida e a agir como pessoas de verdade. Uma folhinha num canto mostra uma data: 31 de janeiro de 19XX. No fim deste plano (um plano de dois minutos?) o homem estremece, há um tremor da câmara subseqüente e depois um movimento vertical que faz subir o plano para o teto mergulhando a imagem num breu ainda maior. Corte em fusão de imagens para um delírio visual de sombras; no seio destas sombras, os vagabundos estendem suas mãos e na faixa sonora, em off, ouvimos um gemido assustado como se fora do homem da cena anterior que agora estaria delirando com os vagabundos ( o medo aos vadios das ruas que está dentro do homem burguês?).

Corte.

 Plano médio de um homem que está deitado numa cama.

Corte.

Plano geral do quarto mostrando o homem que se levantou. No fundo do quadro vemos uma folhinha; data: 01 de janeiro de 19XX.

Correspondente cinematográfico do texto de Graciliano?

“Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios.

Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito e, aproximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa.”

Outra possibilidade. Um primeiro plano fixo do rosto de um homem: sua face é descolorida e seu olhar é doentio. Nos primeiros momentos do plano seus lábios tremem. Depois leva a mão à testa, baixa-a e começa a recitar os dois primeiros parágrafos do livro de Graciliano. Ou seja: como pensar no filme Angústia em termos de imagens, fora da amarração ao genial texto de Graciliano? Ou então fazer como Leon Hirszman quando rodou seu filme baseado em São Bernardo: partir de um ensaio, no caso Ficção e confissão de Antônio Cândido, para medir os passos da adaptação. Poderíamos partir do texto de Avellar sobre Angústia para iluminar nossa adaptação. E ir um pouco mais além: misturar em nosso filme as diversas maneiras de adaptar o livro de Graciliano, filmar dois ou três roteiros de dada parágrafo, incluindo tudo na montagem, e exacerbar esta inquietação criativa de um filme em torno de um livro que o inspira. Acho que é por aí que passa O chão da palavra; cinema e literatura no Brasil como uma nova fonte para nosso cinema, tornando à visão que o realizador Diegues tem do analista Avellar.

(Adeus, Avellar. Infelizmente, como escreveu o romancista inglês E.M. Forster, as duas maiores experiências do ser, o nascimento e a morte, são vedadas ao testemunho autêntico de quem escreve. Não lembramos nosso nascimento e não poderemos escrever depois de morrer. Quem perde são os leitores).

 

(Eron Duarte Fagundes - eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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