A Criatividade Cinematografica Contra a Impaciencia Ocidental
A forma cinematografica de Uma Noite Sem Saber Nada desmancha os proselitismos e capta os sentidos variados da vida contemporanea


Para uma amiga recente, que fizemos em viagem recente ao Rio de Janeiro, a indiana Ishani
As imagens que abrem o filme trazem um quadro de estrutura visual nebulosa em que as pessoas dançam: um contraste; há alegria no interior das cenas mas a estética adota um sombrio fugitivo. No fim do filme novamente as imagens das pessoas que dançam retornam. É como um ciclo: a narrativa reproduz este ciclo. Uma noite sem saber nada (título internacional, A night of knowingg nothing; 2021) é um mergulho na construção dum ritmo cinematográfico original, de genética tão indiana que exige do espectador uma compreensão diversa, uma reeducação de seu olhar viciado no ordinário do cinema. Proposto como um documentário de ficção, o filme se vale da narrativa indireta dumas cartas que se teriam encontrado num estúdio, deixadas por uma estudante de cinema e endereçadas a seu namorado; as paixões entre estes dois jovens aparecem nas missivas misturadas lá pelas tantas com registros de protestos políticos das convulsões sociais indianas, a experimentação visual e o compromisso político se casam na estrutura formal, obsessiva e lenta, que a realizadora Payal Kapadia vai edificando.
Cineasta de Tudo o que imaginamos como luz (2024), Kapadia, nesta sua estreia em Uma noite sem saber nada, vai ainda mais longe em sua busca duma linguagem cinematográfica densa e criativa. As cartas que deparamos sobrepostas às imagens são lidas pela voz-off de Blumisuta Das; estas cartas se assemelham a cartas de nosso desconhecimento: como num velho filme de Max Ophüls, o amor e o olhar dos homens conduzem primeiro não à descoberta mas ao desconhecimento. Mas é a luz imaginada como cinema, no filme de Kapadia, que permite descobrir (des-cobrir) o que que cobre/o que se esconde nestes desconhecimentos.
Em certa sequência os protestos sociais parecem interromper longamente as cartas: ainda que delas façam parte. A voz-off cita (ou evoca) Pasolini, escritor, diretor de cinema, engajado, Pasolini que em 1968 estava ao lado dos policiais contra os estudantes porque aqueles eram filhos de proletários e estes, da burguesia. Hoje os tempos são mais sinuosos e ambíguos, lembra a voz-off que nos protestos indianos os dois lados têm as mesmas origens. A forma cinematográfica de Uma noite sem saber nada desmancha os proselitismos e capta os sentidos variados da vida contemporânea.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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