Bourdieu Contra a Miséria Intelectual
Em Sobre a Televisão, Pierre Bourdieu volta seus tambores contra a audiência e o furo
Pierre Bourdieu, um dos principais nomes do pensamento francês do século XX, tem adotado uma rigidez intelectual que incomoda as “mentes mais contemporâneas” como a do também francês Michel Maffesoli. Sobre a televisão (Sur la télévision; 1997) é um pequeno ensaio exemplar da linha de ação crítica de Bourdieu: o filósofo nunca se furta de debruçar-se sobre os fenômenos da atualidade, mas evidencia em sua exposição de que lado está. Tem-se a impressão de que Bourdieu aspiraria ao momento em que a sociologia tivesse menos aberturas para os leigos e fosse imune ao charlatanismo verbal. É isto que Maffesoli, o filósofo mais aberto, chama “suas funções castradoras”. No entanto, o mundo intelectual precisa de um cérebro vigorosamente brilhante como o de Bourdieu.
Como se sabe de seu texto “Os grãos de areia”, Bourdieu lamenta a degringolada da atividade cerebral ou artística em nome do comércio, a obra ou o pensamento como um produto de venda. Em Sobre a televisão ele torna a esta orientação. A televisão é um pouco demoníaca em sua vulgaridade, mas se o filósofo fala dela, e sua exposição foi transmitida pela própria televisão francesa, é porque gostaria que a televisão fosse outra coisa, um elemento político, um suporte filosófico. Seu livro, paradoxalmente, foi engolido como produto de sucesso pela mídia francesa. No entanto, isto não lhe retira o status de exigência e honestidade intelectuais em que a marca Bourdieu (como literatura e como filosofia) sempre se esmerou.
Em Sobre a televisão Bourdieu volta seus tambores contra a audiência e o furo, talvez dois males quase necessários à sobrevivência do jornalismo. Sabe-se que mesmo jornalistas sérios se rendem ao que Bourdieu chama “exigências do mercado” e usam desvios semióticos para serem vistos, lidos, ouvidos, enquanto dão vazão ao que realmente interessa, senão à maioria, à essência das coisas e à forma como verdadeiramente as sociedades podem articular-se para crescer: um viés político, uma saída poética exigente; enquanto os ditos desvios de signos (o escandalozinho duma atriz de televisão, as discussões reiterativas de um jogo de futebol) entretêm a massa que, com sua audiência, permite aquele outro lado, o político e o transcendental literário.
Não é por acaso que no prólogo de seu ensaio, um desmistificador das verdades jornalísticas, Bourdieu refira velhos filmes do cineasta Jean-Luc Godard em que o mestre francês do cinema desfazia a ilusão de que uma imagem é a própria coisa do mundo real. Bourdieu é um pouco godardiano: um destruidor. Mas é também, como os antigos homens de esquerda, uma mente de algumas certezas: o que, nestes tempos quânticos, pode ser irritante, como vemos da reação de Maffessoli.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br