A Miseria eh Interior

Salgueiro navega na miseria fisica de suas personagens, mas transforma esta miseria (dolorosamente carnal) em pura interioridade

26/08/2023 01:08 Por Eron Duarte Fagundes
A Miseria eh Interior

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(Texto de gaveta escrito originalmente em 2007, quando li o romance de Lúcio; uma espécie de aventura pessoal e subjetiva por um tipo de literatura à beira dos trópicos)

 

É provavelmente o mineiro Lúcio Cardoso o mais introspectivo e escuro dos ficcionistas brasileiros. Ele vai contra uma tradição majoritária da literatura brasileira que é mais social e aberta. Creio que nem mesmo Clarice Lispector, que poderia ser a vertente feminina de Cardoso, chegou ao nível de abstração do romancista de A luz no subsolo (1936), talvez sua obra mais realizada e densa. Em plena década do romance nordestino de cunho sociológico (os anos 30 do século XX, onde despontaram  José Lins do Rego, Jorge Amado, Armando Fontes e até mesmo Graciliano Ramos, cujo rigor estilístico e psicológico nunca foram problema para o lado social de suas narrativas), Lúcio Cardoso ousou contrariar a corrente nacionalista e fez sua própria literatura: individualista, voltada para dentro, quase sem exterioridade. Comparando com o cinema, é mais ou menos a posição do paulista Walter Hugo Khouri dentro do cinema brasileiro.

Salgueiro (1935) é o segundo livro de Cardoso, mas tem uma consistência e uma maturidade narrativa que surpreende num jovem de vinte e três anos. Há duas ou três décadas atrás eu me questionava, ao me deixar arrebatar pelo turbilhão verbal de Lúcio: falta um solo neste jogo de desequilíbrios de Lúcio, aquele solo que a genialidade do russo Dostoievski depositou aos pés de suas personagens. Depois das releituras recentes de A luz no subsolo e Crônica da casa assassinada (1959), esta minha tese se esfarela: Lúcio pode não ser Dostoievski, mas sua profundidade verbal é imensa e eu me entrego, acriticamente, sem medo, a esta vertigem de frases-sensação de seu texto.

Salgueiro navega na miséria física de suas personagens, mas transforma esta miséria (dolorosamente carnal) em pura interioridade. “Tomás está desconsolado. Tanto barracão por uma miséria! Talvez que jamais consiga abandonar aquele lugar horrível. Nunca reunirá dinheiro bastante para ser gente. Não passará de um pobre vendeiro, no fim do inferno, no morro do Salgueiro.” Como todo livro escrito por Lúcio, Salgueiro explende em atmosferas; seu gosto pelo parnasianismo das orações é notavelmente poético, neste sentido sua sintaxe se aproxima um pouco de Graciliano Ramos (embora o barroquismo de Lúcio se contraponha à secura de Graciliano), de José Geraldo Vieira (embora o barroco de Vieira seja mais cerebral e menos sensitivo que o de Lúcio), de Cyro dos Anjos (embora as medidas de Cyro tendam a uma geometria mais exata), afastando-se das distensões mais brasileiras de Erico Veríssimo ou Autran Dourado. “Tomás de Aquino se debruça sobre o balcão. As casas negras sobem esparsas pela encosta. O mato rasteja, cercando o bairro miserável. Vêm de longe choros de crianças e risos ásperos de negras e de homens. Todo o Salgueiro se move como um corpo de gigante, na noite larga que vai crescendo. Uma força desconhecida brota daqueles casebres acocorados no escuro, daqueles barrancos agressivos da estrada. Mas é uma força de doença e de morte, de coisa estragada.”

Pois bem. Salgueiro é um belo romance, a  que hoje, sem os preconceitos analíticos de antanho, me entrego desmesuradamente. Deliro com alguns de seus achados linguísticos e sintáticos. Perco o fio de seu interior dramático e temático esvaindo-me na sua corrente de linguagem que é única nesta literatura e em outras literaturas.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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