Diário de um Cineasta

Diário de um padre ainda é um filme espantoso: raramente o cinema atingiu o interior humano como neste filme

01/03/2019 15:41 Por Eron Duarte Fagundes
Diário de um Cineasta

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Cuido que o mais revelador dos filmes rodados pelo realizador francês Robert Bresson seja Diário de um padre (Journal d’un curé de campagne; 1950). À medida que o jovem e doente padre de aldeia, protagonista da narrativa, vai expondo pedaços de suas perplexidades e de suas inquietações internas, o que o espectador habituado ao diálogo cinematográfico com Bresson sente é que o próprio cineasta começa a executar suas revelações, a construir sob a forma de um diário de textos e imagens sua bíblia fílmica, a dar corpo aos pontos nevrálgicos de seu projeto estético. O diário do padre acaba por ser também o diário do diretor: a alma de ambos se ilumina em cada recanto deste diário aparentemente escrito por um padre que tem atrás de si a escrita precisa e despojada de Bresson.

Diário de um padre ainda é um filme espantoso: raramente o cinema atingiu o interior humano como neste filme. As preocupações religiosas da figura do padre são expostas com uma carga de profundidade que vem da união ímpar que Bresson impõe entre o gesto descarnado do ator, a articulação de vozes distanciadas e a textura estática da imagem: é o auge da simplicidade trabalhada. Imagina-se o estrago que tal realização não deve ter feito em sua época, virada da década de 40 para a de 50: o italiano Michelangelo Antonioni esboçava suas tentativas de revolucionar o cinema da alma e o sueco Ingmar Bergman talvez ainda tateasse questionamentos de Deus bastante ingênuos diante da impiedade formal de Bresson. O cineasta francês deu o pontapé inicial da espiritualidade cinematográfica e a partir dele as ramificações de um cinema tido por literário principiaram a surgir, as narrativas cheias de texto do francês Eric Rohmer e do norte-americano Woody Allen partem daí, da raiz bressoniana; em Diário de um padre imagem e texto se acompanham, se duplicam, se complementam, criando um exultante prazer estilístico que Bresson obtém com meios mínimos.

Depois do tênue mundanismo de sua película anterior, As damas do bosque de Bolonha (1944), eis Diário de um padre, onde Bresson se entrega à sua essência religiosa. Se não fosse cineasta, Bresson poderia ser um agente de Deus, um padre talvez. A questão religiosa em Bresson, conquanto vazada em formas depuradamente simples, é bastante mais complexa e sinuosa que as dúvidas metafísicas de Bergman em O sétimo selo (1956) e A fonte da donzela (1959); tudo é muito mais subterrâneo, menos episódico, mais antropológico que filosófico. Sabe-se que a mística do encontro com Deus pela revelação ou pelo sofrimento é habitual na filmografia de Bresson; seu filme mais perturbador, A grande testemunha (1966), mostra um burro da campanha como uma reencarnação de Cristo. Mas é mesmo em Diário de um padre que a religião se abre inteiramente para o cinema de Bresson: o padre sofre, fisicamente com sua doença que o matará no final (câncer no estômago que lhe provoca hemorragias) e moralmente com os seres perturbados que o rodeiam (a adolescente revoltada e a mãe indignada com a divindade); o padre incorpora os males alheios e sua face frágil mas iluminada é uma dádiva do cinema de Bresson, face única, verdadeira, como exigia Bresson de seus intérpretes não-profissionais.

Como diz o padre no fim: “Que importa? Tudo é graça.”. Que importa o pecado, se somos bafejados pelo dom da graça? Que importa a melancólica banalidade do mundo, se temos a graça de contar com um cineasta como Robert Bresson?

Aos estudiosos, cabe comparar o padre abstrato de Bresson com outro padre famoso do cinema, em Nazarin (1958), do espanhol Luis Buñuel, um padre mais concreto, mais comprometido socialmente.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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