Um Chão de Palavras

Talvez nunca antes o cinema brasileiro tenha encontrado uma tão bela e precisa associação entre palavra e imagem quanto em Lavoura arcaica (2001)

30/07/2018 23:35 Por Eron Duarte Fagundes
Um Chão de Palavras

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Talvez nunca antes o cinema brasileiro tenha encontrado uma tão bela e precisa associação entre palavra e imagem quanto em Lavoura arcaica (2001), a estreia cinematográfica do diretor Luiz Fernando Carvalho, responsável anteriormente por alguns trabalhos na televisão, que, é claro, por evidentes compromissos comerciais, não lhe permitiam exibir toda a criatividade e o rigor atingidos neste seu primeiro filme. Trata-se da segunda incursão de um filme brasileiro no universo verbal muito particular do escritor paulista Raduan Nassar: Um copo de cólera, novela de 1978, teve sua versão em película em 1999 por Aluízio Abranches; a peleja entre a palavra e a imagem dá-se de maneira precária no trabalho de Abranches em função de alguns motivos básicos: a direção de atores parece desleixada, ao contrário das marcações extraordinárias de Carvalho; a utilização do texto de Nassar (sempre exultante) não vai além duma ilustração incômoda, enquanto em Carvalho a beleza e a pessoalidade da imagem se casam com a poesia do verbo descarrilante de Nassar.

O livro é de 1975 e em sua época recebeu aplausos de gente como Alceu Amoroso Lima e Octavio de Faria. O jorro de palavras de Lavoura arcaica não é tão profundamente organizado quanto aquele de Um copo de cólera, mas as frases individualmente consideradas são muito bonitas. E é nesta beleza de imagens verbais, com sua sintaxe e sua adjetivação, que Carvalho mergulha para, à maneira dos grandes cineastas de todos os tempos, extrair do seio familiar a análise dos problemas psicológicos e sociais mais graves; como contraponto ao texto forte dito especialmente por Selton Mello, em atuação deslumbrante, Carvalho faz criações visuais muito próprias, reinvenção da linguagem do cinema, a lentidão dos planos, as características escuras da cena em que os olhos mais sentem do que veem, o toque devagar do momento do corte, os enforcados primeiros planos dos atores em êxtase, a câmara subjetiva que substitui o olhar-da-mãe-pela-janela-na-cadeira-de-balanço (a imagem age como se a câmara estivesse sentada na cadeira de balanço, no lugar ou no colo da velha). Quase todo o filme é em interiores, em sombras, narrado em planos muito próximos; mas há algumas significativas aberturas para cenas luminosas, planos abertos, o exterior da paisagem e da dança.

Mantendo um admirável equilíbrio nas interpretações, atingindo um ponto de fala poucas vezes obtido pelo cinema brasileiro (um cinema que muitas vezes não sabe falar, como já observava o historiador Paulo Emílio Salles Gomes em tempos anteriores ao Cinema Novo), o filme de Luiz Fernando Carvalho mexe com rigor e desabusada irreverência no tema do incesto, assunto já tratado por realizadores de prestígio como o francês Louis Malle e o italiano Luchino Visconti; ocorre que Carvalho faz uma obra tão nossa, tão pessoalmente nossa, que mesmo aqueles parentescos formais com o sueco Ingmar Bergman (os gritos e sussurros em planos sombrios e próximos) são metamorfoseados numa estética profundamente brasileira, não imitativa de nenhuma cultura estrangeira.

(O cinema é um manancial de associações entre a imagem e a palavra, do despojamento de Eric Rohmer ao barroquismo de Alain Resnais. Luiz Fernando Carvalho inventou uma nova forma desta associação que, curiosamente, não evoca filme francês algum.)

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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