A Maldicao da Aldeia
Filme profundamente enraizado na cultura hungara distante de nos


Alinhado entre os grandes filmes do cineasta magiar Béla Tarr, As harmonias de Werckmeister (Werckmeister Harmoniak; 2000) é uma narrativa de uma estranheza absoluta, de uma atmosfera e significados bastante secretos. O filme, cuja captação sombria por sua estrutura fotográfica (são muitos os fotógrafos envolvidos na produção) remete a um espaço-tempo de opressão e ocultamento entre os seres humanos, abre com um exasperado primeiro plano duma lareira (inverno? tempos gelados?), depois o espectador vê uma mão abrir a tampa sobre o fogo, jogar água nas chamas, então um afastamento de câmara vai dissolver o cenário para dentro dum bar onde alguns homens se embriagam. O plano segue sem cortes, por dez minutos; o que temos neste trecho inicial é um plano-sequência, lento e duradouro, em que a personagem central, o músico János, encena a explicação dum eclipse lunar, como se fosse uma peça teatral, determinando que alguém interpreta a lua, outro o sol, outro ainda a terra, mais outro um astro qualquer do sistema, até a dança esquisita e esquiva do fim da sequência. Ao longo de todo o filme, a duração estendida do plano produz uma linguagem de sequências-blocos, com planos-sequência rigorosos e contemplativos, aqui e ali interrompidos por pequenas sequências de intersecção, interstícios tão inóspitos e absurdos quanto todo o resto da realização.
As harmonias de Werckmeister parte dum romance de László Krasnahorkai, o mesmo autor de Sátántangó (1994), também filmado pelo realizador e que é um marco do cinema. A aldeia, as relações do homem com a natureza estão nos dois filmes. Assim como estão em Maldição (1988), outro momento de raridade do cinema de Tarr. Uma mulher, em certa cena, parece declamar todas as esquisitices ameaçadoras que caem na aldeia, um remoto rural do universo do realizador. E, em sua última frase, diz que ainda por cima vem o circo, que viaja de cidade em cidade, trazendo a carcaça mórbida duma baleia e um príncipe que não entendemos. As harmonias de Werckmeister parece dizer-nos que o mundo é mesmo incompreensível: um abismo à beira da crueldade. Afigura-se que se tenha tornado assim historicamente. Há um culpado, naturalmente: o barroquismo musical de Andreas Werckmeister (1645-1706) erigiu o atual sistema tonal de sons, destruiu a música perfeita dos espaços celestes (ou de resistência?) do homem.
Filme profundamente enraizado na cultura húngara tão distante de nós, As harmonias de Werckmeister usa como intérpretes centrais atores germânicos, todos dublados para o magiar. Rudolph como János é dublado em húngaro por Bolba Tomás. Quem faz a voz de Peter Fitz como o velho Eszter é Hauman Péter. E sobra para Móor Marianna permitir à emblemática alemã Hanna Schygulla a expressão vocal.
Naturalmente, As harmonias de Werckmeister traz uma relação do cinema com os conceitos musicais nada naturais. Antes, barrocos e agudamente delirantes.
(Eron Duarte Fagundes — eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

relacionados
últimas matérias




