Um Rigor Teatral por Jorge Furtado
O roteiro de Furtado vai aos anos 30 do seculo XX para captar o ponto inicial da psicanalise no Brasil


Jorge Furtado tem navegado entre o cinema e a televisão, há décadas. Seu gosto pela literatura e o teatro também tem influenciado sua forma cinematográfica. Virgínia e Adelaide (2025), que ele codirigiu com a jovem cineasta Yasmin Thayná, abre-se para todos estes tentáculos da arte do realizador de Ilha das flores (1989) e O homem que copiava (2003). Fechando a ação dramatúrgica num cenário concentrado (o consultório psicanalítico), no que exige dos intérpretes uma atenção e disposição constantes para os detalhes e o conjunto, Virgínia e Adelaide dota-se de um rigor teatral que, graças à experiência diretiva de Furtado, não descura a dinâmica cinematográfica; em todos os seus planos, minucioso, alguns em que a tela é dividida na vertical separando as duas personagens, a psicanalista e a psicanalisada, palpita no filme uma certa obsessão estética que muitas vezes é a raiz de filmar do diretor, obsessivo na condução do ator, obsessivo na montagem (cuja técnica está nas mãos sempre de Giba Assis Brasil), obsessivo em todos os ângulos e situações do enquadramento.
O roteiro de Furtado vai aos anos 30 do século XX para captar o ponto inicial da psicanálise no Brasil. Confronta duas pioneiras. Adelaide Koch é uma psicanalista alemã que chega ao Brasil fugindo da guerra e do nazismo, ela como um alvo, uma judia. Um belo dia ela recebe a visita duma jovem pesquisadora negra, Virgínia Bicudo, médica não-autorizada por ser negra (a cor e o gênero), interessada em psicanálise, em psicanalisar o racismo; para entender o racismo, propõe a Adelaide que a psicanalise para ver os efeitos do racismo nela, Virgínia, e daí partir para seus estudos. Os espelhos distorcidos entre o antissemitismo europeu (vivido por Adelaide) e o racismo brasileiro (experimentado por Virgínia) surgem complexos diante das câmaras de Furtado. Diferenças e semelhanças são vistas e pensadas ao longo dos diálogos entre Adelaide e Virgínia. Os diálogos, construídos com brilho e profundidade, quase remetendo ao americano Woody Allen e ao francês Éric Rohmer, também revelam as aproximações a medo e as descobertas entre uma europeia desembarcada no Novo Mundo e uma nativa brasileira que tanto aprende com a europeia quanto lhe ensina as coisas do Brasil. Ambas se estranham e se completam ao correr das sessões (e dos minutos do filme). É curioso confrontar estas descobertas entre as personagens com o que se passa nos desempenhos das atrizes. Sophie Charlotte, de origem germânica, que interpreta Adelaide, é uma atriz branca e de fácil e ampla visibilidade na estrada audiovisual, e Gabriela Correa, jovem atriz negra, é pouco conhecida; pelas declarações das duas, elas começaram com o estranhamento que as diferenças provocam e chegaram às mútuas descobertas uma da outra que as aproximou. Este é um dos trunfos de que se vale Furtado: emular no comportamento de suas intérpretes a realidade remota das criaturas que pretende expor na tela.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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