O Cinema, a Literatura, os Quadrinhos e as Copias

O Homem que Copiava lida com uma luta constante do cinema de Jorge Furtado

05/08/2023 02:54 Por Eron Duarte Fagundes
O Cinema, a Literatura, os Quadrinhos e as Copias

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O filme foi lançado comercialmente em Porto Alegre em 13.06.2003. Em 10.06.2003 houve, numa das salas do Unibanco Arteplex, onde hoje funciona o Espaço de Cinema Bourbon Country, uma sessão para a imprensa; a esta compareci, como escrevinhador de textos sobre cinema na internet. Agora, vinte anos depois, na Cinemateca Capitólio, um dos palcos culturais de Porto Alegre, O homem que copiava (2003), filme dirigido por Jorge Furtado, tem uma exibição comemorativa de suas duas décadas; a sessão estava lotada, a maioria jovens que certamente não devem ter visto o lançamento do filme, e eu e alguns poucos idosos tornávamos a uma poltrona de cinema para o reencontrar. Afinal, o cinema de Furtado diz muito à minha geração que vive em Porto Alegre e que vê cinema em Porto Alegre há tantos anos; Furtado e seus filmes são um pouco nossos espelhos na tela, cuja compreensão total do processo de espelho parece muitas vezes não estar tão ao alcance de gerações posteriores.

O homem que copiava lida com uma luta constante do cinema de Jorge Furtado. Faz filmes inteligentes que não desdenhem a comunicação com o público. Talvez ainda marcado pelos achados narrativos do ponto mais alto de seu cinema, o filme de curta metragem Ilha das flores (1989), O homem que copiava começa com a montagem trêfega e obsessiva (algo da arte de Giba Assis Brasil, uma das cabeças centrais de nosso cinema) que busca compor situações e personagens em formas que vagam entre o cerebral e o sensorial: a vida cotidiana e despretensiosa do fotocopista André, desde suas obstinações diante duma caixa de supermercado passando por suas relações ambíguas com a gostosa colega de serviço Marinês e a descoberta (como numa janela indiscreta à Hitchcock) de uma garota que lhe cai, Sílvia, e a intromissão do debochado Cardoso via Marinês. Tudo abotoado visualmente, o drama e a comédia começam a ser encenados. A comédia ligeira e comunicativa, com um controle de elenco (especialmente do estrelismo de Laura Piovani, então no auge de ser gostosa no audiovisual brasileiro) de que Jorge é extremamente capaz, vai pouco a pouco adensando-se: mais quando se afasta (um pouco) dos dados eróticos de Luana e das facilidades cômicas de Pedro Cardoso, e tenta concentrar-se nas relações (afetivas na profundidade e só tenuemente eróticas) entre o fotocopista André e a reservada atendente de loja Sílvia, utilizando com sensibilidade os atributos interpretativos de Lázaro Ramos e Leandra Leal. Apesar das aparências, o cineasta logra retirar, em parte, os aspectos televisivos da encenação, onde ele também exerce a direção e de onde boa parte dos atores vem.

Além de Hitchcock, Jorge homenageia uma atmosfera noir erótica entre Pedro Cardoso e Luana Piovani num quarto de hotel (a música de Leo Henkin é dado fundamental nesta ironia que é também uma copiagem paródica), os quadrinhos (com vários desvios) e chega a Shakespeare e um de seus sonetos, que forma um elo que funde as almas de André e Sílvia, quando ele lê (“Quando a hora dobra em triste e tardo toque”, tradução de Ivo Cardoso) e ela interpreta para ele (“Seguir o carro, a barba hirsuta e branca”, o tempo passou), enfim “contra a foice do Tempo é vão combate”, o jeito é formar uma família, reproduzir, “salvo a prole, que o enfrenta se te abate”. Segundo Furtado, Sílvia é uma mistura de Hamlet (ela tudo sabe) e Lady Macbeth (ela mata; no filme, mata seu padrasto, um abusador que a espia no banho). E também no fim envereda muito pelo policial de ação, com as notas de dinheiro falsas criadas pelo fotocopista, a clássica perseguição de Júlio Andrade a Lázaro Ramos na ponte de Guaíba. Com habilidade (habilidade que, segundo o conceito de Furtado, ele divide com vários, considerando o cinema como arte coletiva, uma visão bastante comum à geração gaúcha que fez cinema a partir dos anos 80, ou fins dos 70, a despeito da marca de alguns nomes, como o de Furtado), os diversos liames formais se encaixam narrativamente. E O homem que copiava pode ser visto generosamente numa leitura quase metafórica: somos todos copistas, como aquele Pierre Menard do escritor Jorge Luis Borges que reproduziu ipsis litteris o Quixote de Cervantes como um deliberado anacronismo que por ser anacronismo era diferente da espontaneidade ingênua de Cervantes. Ver O homem que copiava vinte anos depois traz as mesmas e umas novas sensações para com aquela perspectiva do ingênuo passageiro que o mesmo e diverso espectador que hoje o revê. Num encontro pouco depois da sessão para a imprensa em 2003, o crítico Tuio Becker, já assoberbado pela evolução de sua doença de Alzheimer, me dizia que era um filme de que logo nos esqueceríamos. Talvez Tuio estivesse falando  de sua própria doença de memória, memória que, outrora prodigiosa, se esvaía. “Que há de sofrer do Tempo a dura prova”. É o que dá a visão atual de O homem que copiava: move-se bem no tempo.

P.S.: a) Paulo José vai aparecer somente no fim, na cena do Corcovado, como o pai-surpresa biológico de Sílvia. O escasso tempo na narrativa parece caracterizar-se como uma pequena participação afetiva para Paulo, ele que foi a voz-over essencial de Ilha das flores.

b) Outra questão habitualmente levantada é a utilização duma personagem negra em O homem que copiava. Consta que o roteiro de Jorge (no primeiro tratamento o fotocopista se chamava Matheus) da escolha do nome da personagem, ou da cor da personagem. Na história, ou nas situações encenadas, a negritude de André na verdade não tem cor: é quase anódina. Não há o impacto provocativo de nosso sul racista. É algo diferente do que o próprio Jorge fez antes em O dia em que Dorival encarou a guarda (1986), curta-metragem codirigido por José Pedro Goulart, onde, desde o original literário de Tabajara Ruas, o prisioneiro tem sua negritude que assoma verbalmente e Furtado e Goulart puseram em imagens assombrosamente negras. Furtado refere ainda outro filme com um negro, Barbosa (1988), dizendo que hoje, mais de trinta anos depois, faria outro Barbosa, discutindo mais agudamente a questão racial. É curioso que uma das produtoras de O homem que copiava é Luciana Tomasi ( a outra é Nora Goulart), e se torna estranho que, no famoso debate sobre Inverno (1983), de Carlos Gerbase, Luciana tenha dito que eles, da Casa de Cinema, não podiam fazer um filme de senzala porque essa não era sua vivência; ela esqueceu O homem que copiava ou O dia em que Dorival a guarda ou a cor das pessoas realmente nestes filmes poderia para certos realizadores ou espectadores passar sem ser percebida? Causa-me estranheza pensar nestas nossas contradições e esquecimentos, os que fazemos cinema por aqui, os que vemos cinema, os que pensamos sobre cinema, os que vivemos e entramos numa sala de cinema para ver filmes ou, neste caso, um filme gaúcho.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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