Deus e o Diabo na Terra das Sombras
Longe do paraiso (2020) marca o retorno de `, um dos nomes fundamentais do cinema brasileiro


Longe do paraíso (2020) marca o retorno de Orlando Senna, um dos nomes fundamentais do cinema brasileiro, tanto como cineasta (Iracema, uma transa amazônica, 1974, codirigido por Jorge Bodansky e relançado há pouco em cópia nova) quanto como roteirista (Coronel Delmiro Gouveia, 1977, de Geraldo Sarno) ou ainda como teórico e estudioso (organizou criticamente o livro Roteyros do Terceiro Mundo, 1983, de Glauber Rocha). Senna fez parte daquele grupo de artistas baianos, especialmente do cinema, que fizeram uma revolução estética a partir de Salvador no calor dos anos 60 e dali transcenderam para o mundo. Antes da sessão na Estação Net Rio, em Botafogo, no Rio, uma homenagem ao veterano realizador, já em precárias condições de saúde, circulando numa cadeira de rodas. Um dos presentes à sessão, o emblemático ator Antonio Pitanga, também pertencente ao grupo baiano da década de 60, fez uma saudação em que se destacou uma frase: “Foi Glauber quem me levou a Orlando”, disse Pitanga, o que quer dizer, levado por Glauber, Pitanga conheceu Orlando, o clima de “cinema entre amigos” tornava aquele movimento que saía do doméstico para o revolucionário.
Longe do paraíso se arraiga na tradição fortemente social do cinema pretendido por Senna. E não deixa de trazer a genética ou as origens da estética cinematográfica que Senna assimilava com seus pares nos anos 60. Parte de sua intimidade e identidade nasce com os atores. O par central do filme, Ícaro Bittencourt e Emanuelle Araújo, são baianos, em cena conduzem este frescor original de sua terra, e assim também a veterana Sonia Dias, que vive a perversa Madame, a agente da elite que, como um demônio que estimula o mais diabólico dos seres humanos à sua volta e vai promover o enfrentamento fratricida que é o nervo da dramaturgia encenada, deslumbra pela caracterização. Certo: como acontecia nas alegorias cinematográficas dos anos 60, com Glauber e seus filmes à frente, as caricaturas simbólicas exacerbam diante das câmaras. No entanto, o excepcional talento de Senna, desde seu roteiro construído com precisão, adota uma sensibilidade de direção para expor uma dimensão trágica do cinema de que entre nós se estava bastante apartado. Esta dimensão trágica não deixa de casar-se com os aspectos naturais da encenação cinematográfica, que Senna exibiu desde os tempos de Iracema, uma transa amazônica ou mesmo no roteiro de Coronel Delmiro Gouveia (o que faz dele um coautor do filme de Sarno).
Um pouco tangenciando o épico, à maneira talvez de 1900 (1976), do italiano Bernardo Bertolucci, Longe do paraíso igualmente se liga atualmente às lutas da reforma agrária no país, tão conclamada e tão sempre adiada, pelas pressões e ações nas sombras no país de Deus e o diabo das classes dirigentes brasileiras.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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