Daniel Galera: Literatura no Tempo do Cinema

Barba Ensopada de Sangue abre algumas perspectivas dentro dos limites da literatura de Daniel Galera

17/12/2021 16:58 Por Eron Duarte Fagundes
Daniel Galera: Literatura no Tempo do Cinema

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O escritor e jornalista Juremir Machado da Silva me convidou certa vez a investigar alguns dos novos ficcionistas gaúchos que têm despertado a atenção de leitores e críticos; investigar é na verdade uma ambição minha, mas do que me falava Juremir era ler e ver minhas impressões. Ao dar com um exemplar de Mãos de cavalo (2006), de Daniel Galera, comecei por um destes nomes que têm chamado a atenção por aqui.

Galera nasceu em 1979 e tem recebido os favores de alguns que detêm o poder de pensar sobre a produção literária brasileira da atualidade.  A linguagem de Galera escorre com uma certa facilidade e ele, neste seu livro, executa tons e sintaxes amiúde modernosas em suas frases; como acontece com boa parte do que se publica, o que se quer é conquistar a simpatia do leitor contemporâneo, daí as concessões às facilidades e atualidades da linguagem. Esta busca da eterna juventude poética de um texto pode ser encontrada, na história literária, no poeta francês Arthur Rimbaud e também num de seus herdeiros no século XX, o ficcionista norte-americano Henry Miller. Não se pediria a Galera que chegasse a tanto; mas eu desconfio bastante da literatura, vamos lá, de excessiva contemporaneidade de Galera.

Como acontece com quase todos os literatos de hoje, Galera é um fã de cinema: talvez seja a arte mesmo do homem do século XX. Os filmes habitam muitas citações de seu romance. Geralmente são filmes comerciais, obviamente adorados pelo grande público; nada a ver com os filmes mais empenhados aludidos por Antônio Carlos Resende (um gaúcho da velha guarda) em Mortes do amor (2000), também um romance de anemias narrativas, mas por outros motivos. Cuido que Galera, apesar do viés temporal com que sofistica partes de sua narrativa, aspira a ser amado pelas grandes plateias, à semelhança de um ator ou diretor de cinema; ao aludir a filmes, ele está longe do brilho sarcástico e profundo do inglês Adam Thirwell em Política (2003). Mãos de cavalo é uma molecagem literária, sem desdouro no conceito (é verdade que há molecagens inovadoras, como Gargântua e Pantagruel, 1552, do francês François Rabelais) em que o autor lança dados que são mais chutes (tipo vamos ver no que dá isso) do que um arremate treinado (algo pensado e de idéia clara sobre o que quer praticar num romance).

 

(O cineasta paulista Roberto Gervitz tem um belo passado cinematográfico, no qual se destaca o extraordinário documentário político Braços cruzados, máquinas paradas (1979). Mas com Prova de coragem (2016), rodado no Rio Grande do Sul, a partir duma história gaúcha, extraída do romance Mãos de cavalo, 2006, de Daniel Galera, seu modelo cinematográfico naufraga graças à opacidade de filmar, à lengalenga sem ambições de seu roteiro e um não-oculto tributo às formas televisivas, ainda que a narrativa de Gervitz não tenha o ímpeto comercial da televisão.

A crise conjugal do casal de protagonistas, com ela grávida e ele com a cabeça mergulhada num amor da adolescência, se vai desenrolando aos pedaços e sem energia. Mariana Ximenes e Armando Babaioff são protótipos românticos sem inspiração. A participação do uruguaio César Troncoso como intérprete dá um certo ar mais reflexivo, mas não resolve os problemas do filme. É tudo vago e atropelado.)

 Cordilheira (2008) foi escrito por Daniel Galera sob encomenda. Pertence à série “Amores expressos” da Companhia das Letras. Passa-se em Buenos Aires. É narrado em primeira pessoa por uma mulher, uma escritora brasileira que está na capital argentina para o lançamento da tradução de um livro seu. Galera tem um certo dom da escrita, tal como ela é pensada nos dias de hoje, direta e necessariamente superficial. Mas a narrativa seguidamente soa falso: não a sentimos como se estivesse sendo escrita por uma mulher. Capitu no Brasil e Ema Bovary na França, estas duas clássicas da devassidão oblíqua internacional, têm uma verdade feminina que Galera está distante de obter. Galera volta e meia se perde no artificialismo incongruente. Arriscando um pouco, eu diria que Galera tentou um diário íntimo cujo modelo varia entre o antigo francês Choderlos de Laclos e o gaúcho Liberato Vieira da Cunha em O homem que colecionava manhãs (2004), mas derrapou feio ao tentar modernizar o classicismo de Laclos e Vieira da Cunha.

 Barba ensopada de sangue tem algo mais inteiriço que seus trabalhos anteriores, uma verdade ficcional mais autêntica, pois ultrapassa a simples questão do uso duma linguagem e chega ao cerne do que seria natural numa narrativa romanesca. O lado estrangeiro de Santa Catarina em Barba ensopada de sangue tem a função estrangeira que a capital argentina faz em Cordilheira; no entanto, os aspectos criativos deste enfoque são mais densos no “romance catarinense” do “gaúcho” Galera.

O protagonista de Barba ensopada de sangue vivenciou o suicídio do pai. “Entende o seguinte. É inevitável. Decidi faz semanas num momento da mais pura lucidez. Eu tô cansado. Tô de saco cheio.” Após o suicídio paterno, a personagem retira-se para os balneários de Santa Catarina: encontrar-se, recuperar-se. Uma das cenas de Garopaba descreve um show de músicos populares na praça central da cidade. “A praça em si desapareceu debaixo da multidão, do palco secundário, do palco principal com seus canhões de luz verde, vermelha e azul e das dezenas de barraquinhas de artesanato, pinhão, quentão, lanches, guloseimas e acepipes sem fim.” O narrador concentra seu olhar num cenário, a praça central da cidade, e busca captar instantâneos de histórias passadas neste cenário ao longo de algumas horas. Um só cenário, várias personagens em trânsito. “Deputados, aleijados, médicos, policiais, pescadores, atletas, casais com carrinhos de bebê, vagabundos, turistas.” E mais: “Também vieram os entediados, os que não conseguem dormir com o barulho e os que olham em volta com ares de censura ou incompreensão.” Quer dizer: “Todo mundo.”  O leitor já viu o embrião deste projeto de narrar em Les faux monnayeurs (1925), uma obra-prima do francês André Gide: “Ce que je voudrais, disait Lucien, c’est raconter l’histoire, non point d’un personnage, mais d’un endroit —tiens, par exemple, d’une allée de jardin, comme celle-ci, raconter ce qui s’y passe —depuis le matin jusqu’au soir.” (“O que que queria, dizia Lucien, é contar a história, não duma personagem, mas dum lugar —toma, por exemplo, uma alameda de jardim, como esta, contar o que se passa aqui — da manhã à noite.”) Algo assim: “quelque chose qui donnerait l’impression de la fin de tout, de la mort... mais sans parler de la mort, naturellement.” (“alguma coisa que daria a impressão do fim de tudo, da morte... mas sem falar da morte, naturalmente.”).

Galera vai acumulando as situações triviais de seus romances com um certo engenho de conjunto que faltava em suas obras anteriores; nada que faça de Barba ensopada de sangue uma narrativa definitiva ou ao menos satisfatória em pontos essenciais. Mas algo em que a tortuosidade das coisas e das pessoas escorre como o sangue preso numa grande barba: a meleca incomoda mas não deixa de interessar. E traz junto alguns achados narrativos que, se não são novos, tocam indelevelmente alguma sensibilidade do leitor. Barba ensopada de sangue abre algumas perspectivas dentro dos limites da literatura de Daniel Galera.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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