A Literatura na Era do Cinema: Alterações de Percepção
Uma breve constatação sobre a escrita depois do cinema


O cinema — e todos os sistemas de construção de imagens que lhe sucederam— alterou as percepções que se tem do mundo. O escritor que vê filmes — e mais ainda o que desfruta da internet, para bem e para mal— não pode ser sequer parecido com aquele que dispunha somente de livros, teatro, música. Escreve-se diferentemente depois do cinema, e principalmente após a internet, onde a “literatura” de imagens inunda nosso olhar e, mais que tudo, nosso cérebro.
Num romance contemporâneo dos primórdios do cinema, Os moedeiros falsos (1925), o escritor francês André Gide usa a personagem de um romancista para dizer o que pensa da literatura que se deve fazer depois da invenção do cinema. No diário de Edouard, o escritor-personagem de Gide, se anota: “Despojar o romance de todos os elementos que não pertencem especificamente ao romance. Assim como a fotografia, recentemente, livrou a pintura da preocupação com certas exatidões, o fonógrafo certamente desembaçará amanhã o romance de seus diálogos narrativos, dos quais o realista frequentemente se vangloria.”
No começo do filme A noite (1960), obra-prima do italiano Michelangelo Antonioni, ainda durante a apresentação dos créditos, a câmara se move lentamente, baixando ou indo para os lados, para descrever a cidade de Milão (não citada nominalmente no corpo do filme), e esta cidade sem nome mas conhecida transparece, nas precisas marcações visuais de Antonioni, tão aristocrática quanto introspectivamente agressiva. A literatura não teria palavras para transportar devidamente o peso metafísico destas imagens únicas do gênio italiano; antes de Antonioni, Balzac esmiuçaria detalhes que caracterizaram seus romances de costumes; antes de Antonioni, Dostoievski iria direto às trevas do interior do homem. Pós-Antonioni, o ficcionista brasileiro João Gilberto Noll propõe um parágrafo inicial semi-elíptico para seu mais novo romance, Solidão continental (2012): “Ventava na Randolph Street e eu me perguntava até onde iria a vaga disposição de procurar. Uma lembrança rondava pelas minhas têmporas. Esperando o sinal abrir para pedestres, esfreguei-as disfarçadamente.”
Quem escreve vê filmes, quem faz filmes lê livros, lembrou o crítico brasileiro José Carlos Avellar. As trocas artísticas sempre existiram. Mas o cinema (e tudo o que veio depois) tem uma força de superposição muitas vezes maior. Daí, se alguém quer ser escritor, não verá filmes impunemente: as visões alterarão suas percepções da narrativa em palavras. Então, gente que em outros tempos poderia ser escritor simplesmente, como o francês Eric Rohmer, o português Manoel de Oliveira e o alemão Alexander Kluge, ficou no cinema, fazendo filmes, talvez pensando que é melhor assim do que correr o risco de abastardar o texto literário.


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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