A Narrativa Literaria em Seu Cume
Em sua derradeira obra-prima, Daniel Deronda (1878), a ficcionista inglesa George Eliot faz seu narrador onisciente perguntar trivialmente em seu dialogo com o leitor


Em sua derradeira obra-prima, Daniel Deronda (1878), a ficcionista inglesa George Eliot faz seu narrador onisciente perguntar trivialmente em seu diálogo com o leitor: “Ela era ou não era bonita?” Middlemarch (1872), talvez um romance ainda mais imponente, Eliot começa sua narração, depois de um prelúdio místico e maravilhoso, com a seguinte frase: “Miss Broke tinha esse tipo de beleza que parece ser lançada em relevo pelas roupas simples.” Parece que a beleza, especialmente a beleza física das mulheres, é o polo inicial em que se deflagram os conflitos narrativos da autora britânica; pelos olhos (subjetivos) de Daniel acompanhamos a beleza de uma garota, discutida, retorcida em longos parágrafos que são a antecipação de Marcel Proust (que radicaliza o processo), e pela visão direta do narrador somos levados para dentro de Dorothea Brooke a partir de seu belo e despojado aspecto exterior.
Eliot é uma mestra da narrativa literária. Seu Middlemarch é uma notável pintura de uma época (a década de 30 do século XIX) sem descurar os aspectos psicológicos das transformações que se operam nas personagens. Como um grande acorde, o romance tem seu espaço exato para encantar o leitor. Mais para Balzac do que para Dostoievski, a profusão de ideias sociais e comportamentais que Eliot despeja habilmente em suas tramas teve lá seus reparos ao longo dos anos; dostoievskiano convicto, o inglês E.M. Forster ironizou o que ele considerava uma prosa quadrada e sem profundidade, as obviedades de pensamento de algumas orações intercaladas por Eliot entre as ações de suas criaturas; o ensaísta norte-americano Harold Bloom escreveu que não endossa a maioria das afirmações de Eliot, mas tem de render-se à força de sua ficção. Longe da atualidade temática, só resta ao observador contemporâneo desprezar os cacos ideológicos pretendidos frustradamente por Eliot e descobrir as iguarias literárias em seus retratos interiores e de salão.
O poder descritivo de Eliot é admirável; ela joga com o exterior (cenários) e o interior (pessoas) de maneira perfeita, sem perder um milímetro do poder de linguagem. Dizem que ela não era uma estilista como Henry James, mas seus achados na articulação do fruto-linguagem nos assombram. “Um novo e vívido clarão de relâmpago, enquanto ele falava, permitiu-lhes, iluminando a ambos, que se vissem melhor —e era uma luz que parecia o terror de um amor desesperançado. Instantaneamente Dorothea se retirou da janela; Will acompanhou-a e pegou em sua mão num movimento espasmódico; de mãos entrelaçadas, assim ficaram, como duas crianças, olhando a tempestade, enquanto pelo alto iam a ribombar os trovões, e a chuva começava a cair. Depois se puseram face a face, lembrando-se das últimas palavras dele, sem que no entanto se soltassem as mãos.”
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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