O Cinema Chora Pela Literatura
Se alguem tiver a oportunidade de cruzar uma ou duas noites lendo o texto de Roth e depois debru?ar-se sobre o filme de Coixet, podera ver como muitas vezes o cinema chora pela literatura


O narrador de O animal agonizante (The dying animal; 2001), um dos mais recentes romances do norte-americano Philip Roth, é outra vez um machista cínico que devora carnalmente todas as coisas, das questões culturais aos corpos das mulheres com que vai para a cama; certamente Roth não tem aqui o mesmo fôlego criativo e aquela esquiva perversidade de intenções duma obra-prima como O teatro de Sabbath (1995), mas a energia humana e literária com que ele narra os encontros e os desencontros do professor de literatura David Kepesh e de sua jovem aluna Consuela Castillo é saliente e envolve de maneira tão arrogante quanto impetuoso o leitor.
De uma certa maneira, Roth, herdeiro das narrativas amorais de outro norte-americano, Henry Miller, enxerta em seu texto um pouco daquela objetividade crua das novelas fesceninas francesas clássicas de que os expoentes são Choderlos de Laclos e Restif de La Bretonne e cujo espírito recentemente o francês Alain Robbe-Grillet recuperou genialmente em Um romance sentimental (2007); Roth não chega a ser tão agudo, profundo e inventivo quanto Robbe-Grillet, mas exercita sua superior arte literária para, a partir da contemplação do desejo, meditar sobre a fragilidade da beleza ou o instante fugidio da estética. Kepesh não logra assumir integralmente sua obsessão por Consuela, assim a doença final da mulher amada é antes um signo daquilo que se escapa do varão meio homeriano de Roth: assim os lindos seios de Consuela exaltados pelo macho no início do livro vão ser destruídos pelo câncer no final. O narrador de Roth não é nada sentimental com a melancolia que no fim faz as sombras sobre suas personagens: é tão duro e viril como quando fala de sexo. “Alô? David? Sou eu. Consuela. Faz muito tempo que a gente não se fala, é estranho estar telefonando pra você, mas quero te dizer uma coisa. E quero que você fique sabendo por mim, antes que outra pessoa conte a você. Ou antes que você fique sabendo e leve um susto. Eu vou telefonar de novo. Mas vou deixar para você o número do meu celular.” Dois anos depois do rompimento, dois anos depois de David ter deixado Consuela na mão numa festa de mestrado em casa dos pais dela alegando um falso problema no carro, ele é surpreendido pelo telefonema dela numa noite de Natal. Agora, entre eles, o câncer e, mais que a vizinhança da morte, o que impressiona o narrador é a vizinhança da deformação física que deverá solapar o corpo sexualmente amado. O romance termina duas semanas antes da cirurgia de Consuela. O pânico final da personagem é uma abertura abissal do livro: como se a literatura soltasse suas asas para a escuridão.
A cineasta espanhola Isabel Coixet decidiu investir na ficção de Roth e rodou seu Fatal (Elegy; 2008), com roteiro Nicholas Meyer. O roteiro do filme segue muitos dos passos do romance. Há alterações, é certo, mas o entrecho básico do relacionamento tão tempestuoso, breve e marcante do casal disparatado é abordado objetivamente por Coixet. No filme Coixet acrescenta o que se deu depois da cirurgia, a óbvia visita dele a ela no pós-operatório; isto não consta do romance. Mas Fatal é mesmo uma outra coisa estética, diverge bastante do espírito do livro de Roth. A amoralidade que Roth deve ter aprendido com os fesceninos franceses é limpada por Coixet, que troca o duro olhar de macho do narrador por um moralismo amanteigado. O que parece ter interessado a Coixet nas páginas de Roth são as possibilidades de um melodrama, especialmente na maneira choramingas como a cineasta utiliza o episódio do câncer em Consuela. Ver o reencontro das personagens na versão de Ben Kingsley e Penélope Cruz chorando de olhos vermelhos é esquecer aquela metafísica erótica que Roth exerce como ninguém hoje na literatura. “Então pus a mão no seio direito. Existe uma combinação de erotismo com ternura que derrete a pessoa e ao mesmo tempo excita, e era isso que estava acontecendo.” Pouco antes o narrador de Roth confessa que ficou de pau duro diante daquela mulher que estava morrendo. De uma forma vazia e pedante, Coixet se vale de algumas frases-over do narrador de primeira pessoa que no romance é a própria estrutura narrativa; no filme são frases perdidas, difusas, superficiais.
Se alguém tiver a oportunidade de cruzar uma ou duas noites lendo o texto de Roth e depois debruçar-se sobre o filme de Coixet, poderá ver como muitas vezes o cinema chora pela literatura. Em vão. São compartimentos distantes.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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