O Lugar de Annie Erneaux

Entre a melancolia e os tons monocordios, Annie Erneaux brilha ao descrever sua familia de infancia

20/09/2025 03:14 Por Eron Duarte Fagundes
O Lugar de Annie Erneaux

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Para Aurora Fornoni Bernardini, tradutora de O deserto dos tártaros, de Dino Buzzatti

 

Nos três primeiros parágrafos de sua novela O lugar (La place; 1983), breves sessenta e nove páginas, a francesa Annie Erneaux contrapõe uma prova a que sua personagem (ela mesma, e outrora, porém metamorfoseada pela escrita distanciada de que se vale) se submete para ser professora de ensino médio (primeiro parágrafo) à morte do pai da criatura/criadora alguns meses depois, esta morte explicitada no terceiro parágrafo, que sucede a um segundo parágrafo intersticial. “Sua aula foi muito arrastada”, diz um julgador, a despeito de ela ter passado na prova. No segundo parágrafo o narrador identifica os sentimentos daquela submissão ao sistema: “Não conseguia deixar de pensar nessa cerimônia, enquanto ia até o ponto de ônibus, sentindo raiva e uma espécie de vergonha.” O terceiro parágrafo ataca objetivamente: “Meu pai morreu exatamente dois meses depois desse dia”.

Erneaux usa o despojamento num grau mais elaborado do que transparece. As orações diretas e onde este tom direto amiúde oculta o esforço de desviar-se das metáforas (talvez Hemingway, talvez Kafka possam ser os modelos mais palpáveis do estilo de escrever que Erneaux traz para a literatura do fim do século, agora começo de um século). Como uma artista que foi conquistando um espaço inusitado nas letras francesas (embora antes do Nobel permanecesse ignorada do público brasileiro: um filme de Audrey Diwan foi a primeira porta de acesso ao universo da ficcionista por aqui), Erneaux alçou-se para além da classe social e cultural a que suas origens pertencem. A figura do pai define esta passagem não isenta de surpresas e traumas: “Quando leio Proust ou Mauriac, não consigo acreditar que eles se referem à mesma época em que meu pai era criança. O ambiente em que meu pai vivia era medieval.” Este não é um fato novo, a chegada do escritor de classe média baixa a este mundo aparentemente aristocrático da arte; se bem lembrarmos, o brasileiro Graciliano Ramos expõe também estes avanços, uma literatura, a de Graciliano, às vezes marcada por seu jeito agreste, por seu jeito do sertão, determinando às vezes a sintaxe, às vezes o vocabulário, às vezes coisas morfológicas do texto. Erneaux, com sua escrita descarnada, parece remeter-se a certas coisas de seu outrora.

Entre a melancolia e os tons monocórdios, Erneaux brilha ao descrever sua família de infância. “Naquela época, sobretudo no inverno, eu chegava da escola esbaforida, esfomeada. Tudo ficava apagado em casa. Os dois estavam na cozinha, ele sentado na mesa, olhando pela janela, minha mãe em pé ao lado do fogão a gás. Um silêncio concreto caía em cima de mim. Às vezes, um dos dois dizia: ‘vai ser melhor vender’. Nem valia a pena começar a fazer meus deveres de casa. As pessoas iam a outros lugares, à Cooperativa, ao falanstório, a qualquer outro lugar. O cliente que aferia a porta inocentemente nos soava como um escárnio. Era recebido como um cachorro e acabava pagando por todos aqueles que vinham à loja. O mundo tinha nos abandonado.”

Erneaux descreve como ninguém os automatismos do mundo em que vivemos. No parágrafo que encerra a novela, a personagem-narradora-autora topa como caixa de supermercado uma ex-aluna sua. As distâncias de memórias entre a professora e sua ex-aluna são acompanhadas com precisão sensível pela ficcionista. “Ela já estava pegando com a mão esquerda as compras do cliente seguinte enquanto ia digitando, com a mão direita.” Os conflitos da personagem com seu pai se revelam os conflitos da personagem com o mundo.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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