As Manhas da Narrativa Literaria
A Mulher de Dois Esqueletos vai semeando, em suas historias de amor, uma filosofia da literatura


Numa conversa sobre seu livro A mulher de dois esqueletos (2024), a escritora Julia Dantas diz que o escreveu como se fosse uma coletânea de contos, aí alguém que leu os originais prévios a informou de que ali havia os elementos dum romance. Quem lê a obra acabada publicada depara um romance ultramoderno, que junta os fragmentos, que mistura as histórias pessoais e as meditações ensaísticas.
Entregue basicamente a uma voz em primeira pessoa (a exceção é novamente um capítulo, que se desvia para a terceira pessoa, dispersando-se em algumas personagens), A mulher de dois esqueletos trata duma dicotomia que é a própria essência duma artista, duma mulher, como viver a arte e ter um filho, como ser artista e ter uma vida comum, fora da arte. “A arte é a expressão da sociedade.” Mas também: “A arte quebra vidraças de banco.” Ou ainda: “A arte tem o poder de chegar à essência das coisas.” E, na real: “A arte vai dormir derrotada.” A mulher de dois esqueletos, também vivido nos tempos da pandemia, navega nos temores da personagem, da narradora, da autora. Medos. “O medo do sexo. O medo dos canais vaginais pelos quais passam bebês.” Ou: “O medo do sexo de que seja verdade o que falam sobre os interesses masculinos.” Em A mulher de dois esqueletos estabelece um dos retratos possíveis da sociedade em que um romance como este, que foi construído com uma sensibilidade única, aparece.
A mulher de dois esqueletos vai semeando, em suas histórias de amor, uma filosofia da literatura. “Os amores impossíveis são os mais bonitos, não apenas por serem românticos, é claro que por isso também, mas, sobretudo, por sua liberdade. Um amor impossível não prende ninguém. Ele sequer começa, ou, caso comece, dura pouco. Depois vai cada um para seu lado seguir a própria vida, uma vida que acaba de ganhar mais profundidade, mais uma camada de significado, pois marcada pelas cicatrizes de um amor perdido. Esse, para mim, era o amor ideal: circunscrito ao passado.” Umas observações assim, como quem não quer nada, divagando no cotidiano, quase no lugar-comum, de repente parece transcender e estas frases observam o leitor (o livro olha para o leitor) com um outro modo, chegando a um outro tempo dos sentimentos, ali talvez esteja o coração deste romance que a certa altura confronta a Tóquio trepidante de um filme da americana Sofia Coppola com o “ritmo plácido de Yasujiro Ozu”, um japonês clássico que vê as mesmas ruas de maneira diversa. As citações, em A mulher de dois esqueletos, são feitas sem pompa, e podem fazer desabrochar a mecânica como a escrita de Julia Dantas foi edificada neste livro.
“Abro a porta do apartamento e entro em pânico com o silêncio, imagino acidentes e tragédias. Mas então vejo meu companheiro deitado no sofá com um livro na mão. Ao lado dele, nosso filho está dormindo seu sono de mistério.” A chegada, os temores, a leitura, a cena familiar: tudo segue o rumo, entre um esqueleto e outro.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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