A Inauguracao do Seculo
Freud amplia os horizontes de percepcao numa area bastante complicada e quase secreta
Os livros de Sigmund Freud introduziram o século XX. Mas o escritor é filho de lucubrações de um novo-cientista que assomava nas décadas finais do século XIX, aquelas mesmas que geraram um ficcionista tão tortuoso quanto o russo F.M. Doistoievski. Em A interpretação dos sonhos (Die Traumdeutung; 1900), Freud, um austríaco que nasceu numa geografia ambígua da etnia europeia (pertencia ao Império Austríaco mas depois seria o que hoje é a República Tcheca), parte naturalmente um pouco do que deve ter lido em Dostoievski, lado a lado com suas observações das realidades à deriva da mente humana, para suas teorias do sonho como uma segunda realidade que ilumina em boa parte o comportamento do homem em vigília.
Sem pudores e abissal como era de seu feitio, Freud amplia os horizontes de percepção numa área bastante complicada e quase secreta: “O sonho é algo inteiramente apartado da realidade experimentada em vigília; poderíamos dizer, uma existência hermeticamente fechada em si mesma, separada da vida real por um abismo intransponível.” Materialista, nascido no ambiente cientificista de um século confessional, Freud busca enquadrar sua visão dos sonhos numa reflexão filosófica quase matemática. Mas há algo que escape. “À fantasia onírica falta a linguagem conceitual, ela precisa pintar plasticamente aquilo que quer dizer, e, como os conceitos não exercem qualquer influência debilitada, ela pinta isso com a abundância, a força e a grandeza da forma plástica. Por isso, sua linguagem, por mais clara que seja, se torna difusa, desajeitada, canhestra.” Dentro de sua matemática psicanalítica, Freud cria seus instantes de demência, influenciado um pouco pela arte de seu tempo, para ajudar-se a explicar as estranhezas da alma —a partir dos sonhos. E desafia-se: “Não há dúvida de que foram os sonhos desconexos e confusos que impulsionaram a criação do método de decifração.”
Mas, em seu grande livro, há pontos preconceituosos e limitadores, talvez desatualizados. Suas observações sobre a psicologia infantil, por exemplo. Ele não a tem pela complexidade que hoje se percebe. “Na minha opinião a psicologia infantil está destinada a prestar à psicologia dos adultos serviços semelhantes àqueles que a investigação da estrutura ou do desenvolvimento dos animais inferiores presta à pesquisa da estrutura das classes de animais superiores.”
Na essência, Freud vai à imagem do sonho para ver nela umas traduções de nosso pensamento enquanto dormimos e sonhamos. Ligando suas associações de ideias, tão científicas quanto livres, Freud —arte e ciência— criou seu mundo recriando o mundo de todos nós. Como Charles Darwin, um inglês rigoroso, um homem de ciências, e Marcel Proust, um francês de grande imaginação poético-sintática, um homem da arte. Freud é uma fusão de muitas coisas na virada do século.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br