O Barroquismo Intelectual de Fausto Wolf
O certo é que A milésima segunda noite é um extasiante retrato de época visto de um ponto de vista de uma classe de intelectuais brasileiros que, vinda do século XX, chegou às primeiras décadas do século XXI
Nos tempos da inteligência controlada, dirigida, com o retorno das paranoias moralistas, é tão bom topar com o cérebro literário sem peias nos neurônios do gaúcho Fausto Wolf. Na introdução de seu livro A milésima segunda noite, ou história do mundo para sobreviventes (2005) ele anota na primeira frase: “Não há razão para escrevermos um livro se não o pretendemos grande.” O que o leitor encontra nas mais de 700 páginas seguintes é bem isto: uma grandiloquência intelectual e mental que nada tem de pedante, que é puro prazer de pensar e ver a maneira da construção das frases.
Acompanhamos ali as circunstâncias do mundo, a vida do autor, suas paixões mundanas e estéticas, certos trechos reais ou imaginados e algumas anedotas que em sua simplicidade parecem metafóricas dos tempos vividos. Na noite número sete o marido se masturba diante da mulher, na cama; ela está de costas para ele e pergunta: “—Almeida, você está se masturbando?” O diálogo que segue é o próprio patético do cotidiano. Há admiráveis redutíveis. Na noite 281 diz sobre Marcel Proust: “Um rei como escritor e uma hipocondríaca vizinha faladeira como ser humano.”
Atentando para muitos de seus ditos, evoca-se a atualidade brasileira deste 2018. “Muitas vezes as coisas não são o que parecem ser, nem o que dizem que elas são.” No diário de um torturador: “Minha mãezinha que está nos céus, a senhora sabe que eu não tenho culpa se aquele rapaz morreu. Eu não sabia que ele era tão fraco... Eu não tinha nada contra ele, mas foram eles, foi o Coice dos Santos quem me disse que ele era subversivo e que queria transformar nosso país num inferno comunista, onde os pais fazem sexo com as próprias filhas. Por favor, mãezinha, acaba com esse pesadelo!”
Ao longo de seu livro, Wolf viveu os primeiros anos do PT no governo e revelou sua alegria quando Lula foi eleito: “Acho que os dias mais felizes da minha vida foram quatro: quando descobri que sabia ler, quando dançando com uma adolescente senti uma dorzinha gostosa no coração e descobri o amor, quando nasceu minha primeira filha e quando Lula ganhou a eleição.” (Noite 976). Mas na noite 977 mostra sua decepção com o governo cuja chegada ao poder o entusiasmara: “O PT está no poder há cinco meses (junho de 2003) e até agora as medidas foram neoliberais e nada foi feito pelo povo. Nenhum ladrão de colarinho branco na cadeia. Em que ponto de sua vida o operário se transformou num burguesinho embevecido?” Que diria Fausto do segundo mandato de Dilma, com alianças cada vez mais espúrias? Que diria ele do Brasil de agora, ocaso de 2018?
Não temos como saber: o autor morreu há dez anos. O certo é que A milésima segunda noite é um extasiante retrato de época visto de um ponto de vista de uma classe de intelectuais brasileiros que, vinda do século XX, chegou às primeiras décadas do século XXI.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br