O Encanto Visual de um Conto de Aldeia

A múmia (Al Momia; 1969), clássico do cinema egípcio realizado por Chadi Abdel Salam é uma reflexão cinematográfica aldeã transcendente

16/10/2018 17:57 Por Eron Duarte Fagundes
O Encanto Visual de um Conto de Aldeia

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Todos somos aldeões. Todos, de alguma maneira, em algum momento, voltamos a alguma aldeia. A múmia (Al Momia; 1969), clássico do cinema egípcio realizado por Chadi Abdel Salam (alguns grafam Shadi), é uma reflexão cinematográfica aldeã transcendente. Visto aqui em Porto Alegre em março de 1979 no Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (este comentarista tinha então vinte e três anos), A múmia foi uma descoberta, por um incipiente aprendiz de ver cinema, duma forma de fazer um filme em que uma certa plasticidade lenta e cheia de detalhes visuais-sonoros conduzia a uma narrativa livre de amarras de linguagem e capaz de exasperar o espectador por um propósito fílmico tão célere quanto diferente de tudo o que se poderia ver numa tela de cinema. Por muitos anos, se carregou na memória de cinemaníaco que nada se pareceria com A múmia, cujos sarcófagos renasceriam convertidos em esculturas armênias nas décadas seguintes no cinema de Serguei Paradjanov, especialmente A lenda da fortaleza de Suram (1985).

A múmia foi restaurado em 2009 e andou em retrospectivas de festivais internacionais. Hoje em dia há uma cópia disponível no youtube e, ainda que se depare com um original árabe sem legendas, a força da encenação cinematográfica de Abdel Salam é tão grande que segue hipnotizando o espectador, passados quatro décadas das excitações daquela sessão numa noite do Salão de Atos da Universidade.

Segundo o crítico francês Guy Hennebelle, A múmia é um “relato encantatório, que possui a fascinante beleza de um conto popular narrado por um almuadem” e “é uma obra admirável que esboça pela primeira vez a análise da relação entre a civilização faraônica e a civilização árabe.” De fato: é como se o espectador estivesse numa aldeia árabe e ouvisse um ancião muçulmano contar esta história que se passa no começo da penúltima década do século XIX. Mais que tudo, dizem que a história de fato aconteceu. O rosto do intérprete Ahmed Marei, que vive o protagonista, é uma das faces mais permanentes do cinema: com o semblante moreno e um pouco secreto e algo angustiado do ator é capaz de caracterizar com aguda sensibilidade o dilema da personagem; puro e primitivo, o jovem egípcio que dá a consciência narrativa se move entre saqueadores dos tesouros de túmulos de faraós e as necessidades de sobrevivência do povo pobre do lugarejo; a hesitação do rapaz está em usar da riqueza dos túmulos para prover o sustento dos seus ou preservar os tesouros como história, no meio destas inquietações os ladrões lhe tomam algumas joias. Atravessados pelos zunidos dos ventos do deserto, os cenários brancos e vazios daqueles ermos formam uma plástica profundamente bela; a forma do corte na montagem e os cruzamentos de planos captando rostos e palavras constroem uma tensão mística que é bem uma recriação do universo mágico da antiguidade. E aí então é que compreendemos a voz de almuadem identificada pelo crítico francês.

Todos somos aldeões. E retornamos à aldeia. Augusto Meyer, ensaísta aqui dos pampas, ao falar de seu patrício escritor João Simões Lopes Neto, anotou: “Eu já tive a sorte de ler os Contos gauchescos numa velha casa de estância, com as janelas abertas sobre os horizontes limpos da campanha. Recorro agora ao meu caderno de notas, para reconstruir a poesia arisca daquele momento. Através das linhas a lápis, quase apagadas, ressurge na memória a paisagem, em toques de mancha impressionista.” Mais para o norte do país, José de Alencar, hoje um autor descaracterizado pelo gosto moderno, escreveu no prólogo da primeira edição de Iracema (1865): “O livro é cearense. Foi imaginado aí, na limpidez desse céu de cristalino azul, e depois vazado no coração cheio de recordações vivaces de uma imaginação virgem. Escrevi-o para ser lido lá, na varanda da casa rústica ou na fresca sombra do pomar, ao doce embalo da rede, entre os murmúrios do vento que crepita na areia ou farfalha nas palmas dos coqueiros. Para lá, pois, que é o berço seu, o envio.” Pode ser que Alencar, lido hoje, tenha falhado em suas intenções; mas pensar que, em seu tempo, ele pensava Iracema como um conto de aldeia me remete à visão do filme A múmia, onde também os murmúrios do vento crepitam na areia. Aldeões atentos de ouvidos somos todos: A múmia faz-nos retornar.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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