A Rotina e Seu Encanto

O rigor documental de um filme de ficção chega à perfeição em A Árvore dos Tamancos

20/05/2016 22:38 Por Eron Duarte Fagundes
A Rotina e Seu Encanto

tamanho da fonte | Diminuir Aumentar

 

No início de A árvore dos tamancos (L’albero degli zoccoli; 1978), dirigido pelo italiano Ermano Olmi, um pai camponês entra numa discussão com um padre católico; este argumenta da necessidade de um dos filhos, o mais inteligente da família (inteligência dada por Deus, diz), ir à escola; o pai queixa-se que logo agora, quando nasceu um novo filho e precisam mais dele para ajudar em casa, tem de aparecer isto de escola; o padre replica que, se perdem um pouco de ajuda agora, os benefícios da escola mais permitirão ao menino ajudar a família no futuro. A argumentação do padre vence e veremos seguidamente o menino passar meio despercebidamente pela imagem, um plano médio, mochila nas costas, rumo do colégio, sabe-se, embora não haja esta indicação no roteiro que aparece no filme.

Em Pai patrão (1977), dos irmãos italianos Paolo e Vittorio Taviani, outro marco do cinema de camponeses da década de 70, há um início que igualmente discute a questão da escolaridade no meio rural, mas a solução é diversa: o pai do garoto (garoto que é o protagonista e é quem conta tudo o que se passa no filme a partir de suas reminiscências; em Olmi, que também faz um filme de reminiscências, estas são evocadas por um narrador neutro, onisciente), entra violentamente numa sala de aula e retira seu filho dali, para labutar em casa, “precisamos dele para cuidar das ovelhas”.

Ermano Olmi foi considerado pelo áspero crítico francês Guy Hennebelle o mais típico representante do pós-neo-realismo-tardio. Os Taviani daquela época são igualmente herdeiros desta fecunda escola do cinema italiano. Recordando: Pai patrão foi a Palma de Ouro do Festival de Cinema de Cannes de 1977, cujo presidente do júri foi o diretor de cinema italiano Roberto Rossellini, que morreria ainda em 1977; A árvore dos tamancos ganharia a Palma de Ouro do ano seguinte, 1978. Rossellini: o expoente do neo-realismo italiano dos anos 40, onde rudes camponeses do interior da Itália eram utilizados para criar uma dramaturgia fílmica nova; a sueca Ingrid Bergman, estrela de Hollywood, revelou ter estado aparvalhada diante de seus simplórios parceiros de elenco em Stromboli, terra de Deus (1949), o primeiro filme dela com Rossellini. Pai patrão e mais radicalmente A árvore dos tamancos exacerbam as questões das interpretações de amadores no cinema, levando adiante os sonhos estilísticos de Rossellini; o rigor documental de um filme de ficção chega à perfeição em A árvore dos tamancos.

Rever esta obra-prima de Olmi em DVD lançado pela Versátil é um deslumbramento ininterrupto de cerca de três horas. Quando lançado no país, o filme de Olmi, como já acontecera com o citado dos Taviani, foi desrespeitado pelo desleixo dos laboratórios de copiagem: a luminosa fotografia assinada pelo próprio Olmi, comentada aqui pelos Marco Pólo que viram a realização na Europa, chegava ao espectador brasileiro num visual de mofo, como um bolo retirado do forno antes de seu tempo; agora, a captação em dvd do universo de cores e luzes do filme permite ao observador acompanhar melhor esta poesia natural do cineasta, ver as passagens das estações em sua pictoricidade, sentir as ligações da fotografia com a terra, emocionar-se com a densidade dos planos abertos da primavera que se casam com a exultação das criaturas em cena. Camponês como os seres que ele arregimentou para viverem ancestrais de fins do século XIX, Olmi abdica de todo narcisismo de um autor cinematográfico para captar a beleza da rotina de gestos humanos, assim como fala o último filme rodado pelo japonês Yasujiro Ozu, cujo despojamento de filmar quase em bruto permite uma associação com A árvore dos tamancos provavelmente mais perturbadora e criativa que a possível genética rosselliniana.

Olmi realiza uma narrativa cuja extraordinária unidade nasce da junção de episódios que se desligam facilmente: a colheita do trigo, a matança do porco, as andanças das personagens pelo campo, o adubo da terra com esterco de galinha para colher antes e melhor os tomates, a aproximação tímida e o casamento pastoral e a casta lua-de-mel num convento (que acolhe órfãos) dum jovem casal. Em momento algum estas linhas livres do roteiro se dispersam, porque Olmi, que diz ter dado o assobio inicial para seus irmãos camponeses viveram suas próprias histórias, é um assobiador de primeira.

O pai, que no início do filme questiona o padre sobre a eficácia prática da escola, vê na seqüência final toda sua família de numerosos filhos ser expulsa das terras de seu patrão. Motivo: num momento de consternação, depois de ver seu filho chegar em casa com os pés frios e descalços vindo do colégio, corta uma árvore da propriedade para fazer um singelo par de tamancos para seu garoto. Descoberto no fim, é suspenso o arrendamento que tem com o proprietário. A imagem final da família se retirando da propriedade é melancólica: revela quão duros são os descaminhos que tornam a pirâmide social desigual; vencer esta desigualdade, apresenta durezas e recuos, ir à escola, fazer o tamanco, perder o emprego, recomeçar, arrostar a disfunção da injustiça social. Enfim, podemos saltar sobre o tempo, sair dos fins do século XIX, desembarcar em Cannes em meados do século XX, observar aquele mesmo camponês expulso do campo por seu patrão e que sai cabisbaixo por entre a vegetação desolada, este mesmo camponês tripudiado  está num Festival de Cinema, ganha o prêmio maior. Sabe-se que foi longo o caminho daquela carroça de família de camponeses pelos campos italianos até desembarcar triunfante num festival de cinema cujos salões são basicamente preenchidos pelo refinamento burguês.

 

P.S. 1: Há uma cena em A árvore dos tamancos, onde as crianças fazem a tradicional brincadeira de esconde-esconde, que se ligou em minha memória a uma cena semelhante de crianças em Cria cuervos (1976), do espanhol Carlos Saura. Nada mais longe do tom direto de Olmi do que as alegorias transparentes de Saura. Porém, alguma coisa esta evocação-ligação insinua: a busca da naturalidade realista por Saura bebe na mesma fonte de cinema que o realismo documental de Olmi.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

Linha
tamanho da fonte | Diminuir Aumentar
Linha

Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

Linha

relacionados

Todas as máterias

Efetue seu login

O DVDMagazine mantém você conectado aos seus amigos e atualizado sobre tudo o que acontece com eles. Compartilhe, comente e convide seus amigos!

E-mail
Senha
Esqueceu sua senha?

Não é cadastrado?

Bem vindo ao DVDMagazine. Ao se cadastrar você pode compartilhar suas preferências, comentar ou convidar seus amigos para te "assistir". Cadastre-se já!

Nome Completo
Sexo
Data de Nascimento
E-mail
Senha
Confirme sua Senha
Aceito os Termos de Cadastro